Entrar a pecar
Entrar a pecar numa 4ª feira de cinzas é obra, não? Até podia defender-me com toda a retórica possível, no entanto acho mais interessante contar a história e demonstrar a dificuldade de viver o Evangelho no dia-a-dia do que defender-me das minhas falhas. Haverá momento mais apropriado para o fazer já junto d’Ele e de São Pedro (que também, pelo que ouvi dizer, era rapaz de bons costumes e maneiras).
Seria mais uma 4ª feira de cinzas, em direção ao trabalho, naquela que costuma ser a minha caminhada matinal. O céu apresentava-se cinzento e cheio de nuvens (se calhar já adivinhava o que me esperava), mas lá me fui safando por entre os pingos da chuva. Já perto do meu local de trabalho, o semáforo destinado aos carros ficou vermelho e, como todos os carros estavam parados e ainda teriam de esperar, decidi atravessar um pouco antes da passadeira para aproveitar o sinal de verde da outra passadeira que se encontrava do lado contrário àquele em que eu estava. Eis senão quando, um indivíduo extremamente elegante, charmoso e bem-educado arranca o seu carro para impedir que eu possa passar entre o carro da frente e o seu e delicadamente, apontando com a mão para a passadeira, expressa: “A passadeira é mais à frente!”. Parei e, por momentos, pensei: “Eu se fosse rico e um bom cidadão saltava para cima do carro, dava uns saltos em cima do capô e seguia com a minha vida.”. No entanto, lembrei-me das palavras de Jesus em que nos pede para oferecer a outra face. E assim o fiz. Parei, ofereci-lhe a minha cara de mau, respirei fundo e contornei o carro seguindo o meu percurso.
A verdade é que apesar de ser um pequeno episódio e de ter, simbolicamente, dado início à minha caminhada quaresmal fiquei a pensar no quão difícil pode ser a vivência da radicalidade pedida por Jesus na sua Boa Nova. Realmente não é nada fácil amar aqueles que acordam maldispostos de manhã, ou que são rabugentos no trânsito ou que vivem de mal com a vida. Talvez, nos dias de hoje, mais do que amar inimigos (que também não deve ser coisa fácil de se cumprir) é conseguir amar aqueles e aquelas que, cruzando-se na nossa vida, sem qualquer apresentação, tornam o nosso dia ainda mais cinzento e chuvoso do que efetivamente estava. O segredo para se tentar viver esta radicalidade pode estar na oração, mas penso que acima de tudo estará na capacidade de regular as emoções e de entender que o mal pode ser resolvido com o bem e, muitas vezes, o bem é respirar fundo, fazer cara de mau e seguir para que desta forma se mantenha a paz.
Em relação a mim espero chegar à Páscoa sem pensar neste episódio e se me voltar a acontecer outro idêntico conseguir ter a capacidade de sorrir, rezar por essa pessoa e deixar que isso não afete o meu dia, mesmo que seja um dia cinzento e chuvoso. Talvez um dia…até lá vivo a Quaresma para me aperfeiçoar e tentar ser mais parecido com Jesus, o Nazareno.