Deus fragmentado
Rasgamos uma folha para a partir em pedaços e inutilizar o conteúdo, ou para oferecer um pedaço de folha a alguém, partilhando a possibilidade de um espaço em branco onde possa escrever alguma coisa. Também aquela hóstia, se rasgada, partida, pode ser partilhada e parece ser isso que está a acontecer. Porém, rasgar é um acto por nós controlado. Fragmentar é um acto natural se houver condições para isso e o controlo não estiver nas nossas mãos, mas na interacção com o ambiente onde o ligamento/todo está imerso.
Na Eucaristia parece sermos nós a rasgar um Deus que Se oferece a Si mesmo, mas talvez seja o próprio Deus que em nós Se fragmenta no ambiente de amor que nos une à volta do altar. Um Deus rasgado é um Deus ferido e nessa visão une-se ao nosso sofrimento que nos rasga por dentro. Um Deus fragmentado é um Deus oferecido e nessa visão une-nos no Seu amor que nos renova por dentro.
Quando era adolescente ouvia que o amor de Deus é uma operação matemática paradoxal porque ao dividir por dois, dá sempre mais do que tínhamos antes. Na óptica de um Deus fragmentado, se o todo estiver totalmente presente na parte, faz algum sentido que seja a parte a transformar-nos num todo maior, em que nos sentimos mais unidos pelo fragmento que consumido nos consome, e nos transforma num ligamento maior pelo amor que nos une.
«Não vim trazer a paz, mas a espada.» (Mt 10, 34)
«Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles.» (Mt 18, 20)
A pergunta inicial sugere a dicotomia, mas ao procurar a resposta, apercebo-me de que talvez esteja diante de uma dualidade. Duas perspectivas que são uma só como o vaso de Rubin. Deus rasgado "e" fragmentado.
[1] João Francisco Gomes à conversa com Ricardo Araújo Pereira, "O que é que eu estou aqui a fazer?", Tinta da China, 2024.
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