Deus fragmentado

Crónicas 5 dezembro 2024  •  Tempo de Leitura: 3
... ou rasgado? Surgiu-me esta questão ao ler — «Quando estamos a celebrar a Eucaristia, estamos a celebrar um corpo que é rasgado e que está num espaço de fronteira.» [1] — Rasgado é uma expressão forte porque a folha de papel deixa de ser ela própria quando rasgada. Porem, um ligamento de líquido quando é fragmentado não deixa de ser ele próprio, mas faz-se ele próprio em múltiplas partículas. Num fragmento está o todo contido numa parte. Porquê rasgado?

Rasgamos uma folha para a partir em pedaços e inutilizar o conteúdo, ou para oferecer um pedaço de folha a alguém, partilhando a possibilidade de um espaço em branco onde possa escrever alguma coisa. Também aquela hóstia, se rasgada, partida, pode ser partilhada e parece ser isso que está a acontecer. Porém, rasgar é um acto por nós controlado. Fragmentar é um acto natural se houver condições para isso e o controlo não estiver nas nossas mãos, mas na interacção com o ambiente onde o ligamento/todo está imerso.

Na Eucaristia parece sermos nós a rasgar um Deus que Se oferece a Si mesmo, mas talvez seja o próprio Deus que em nós Se fragmenta no ambiente de amor que nos une à volta do altar. Um Deus rasgado é um Deus ferido e nessa visão une-se ao nosso sofrimento que nos rasga por dentro. Um Deus fragmentado é um Deus oferecido e nessa visão une-nos no Seu amor que nos renova por dentro.

Quando era adolescente ouvia que o amor de Deus é uma operação matemática paradoxal porque ao dividir por dois, dá sempre mais do que tínhamos antes. Na óptica de um Deus fragmentado, se o todo estiver totalmente presente na parte, faz algum sentido que seja a parte a transformar-nos num todo maior, em que nos sentimos mais unidos pelo fragmento que consumido nos consome, e nos transforma num ligamento maior pelo amor que nos une.
«Não vim trazer a paz, mas a espada.» (Mt 10, 34)
A espada que rasga as nossas certezas, opiniões omnipotentes, comportamentos rígidos e cristalizados. Mas...
«Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles.» (Mt 18, 20)
O amor recíproco que une os fragmentos pela presença de um Deus fragmentado que se faz tudo em todos.

A pergunta inicial sugere a dicotomia, mas ao procurar a resposta, apercebo-me de que talvez esteja diante de uma dualidade. Duas perspectivas que são uma só como o vaso de Rubin. Deus rasgado "e" fragmentado.
[1] João Francisco Gomes à conversa com Ricardo Araújo Pereira, "O que é que eu estou aqui a fazer?", Tinta da China, 2024.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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