O Precedente Natural

Crónicas 19 março 2025  •  Tempo de Leitura: 5

Estaremos ainda abertos à experiência de Deus do modo que Ele quiser? Ou estaremos demasiado entretidos nesta era digital, de tal modo que essa questão deixou de passar pela nossa cabeça? Pela oração, amor aos outros com gestos concretos, ou fazer bem aquilo que temos para fazer agora, são algumas das coisas que temos sob o nosso controlo e através das quais aspiramos elevar o nosso coração a Deus. Esta é uma experiência ascética. Mas ter o coração aberto e atento ao momento em que nos damos conta de estarmos diante de Deus e da oportunidade de fazermos uma experiência com Ele d'Ele, é a parte mística que exige um precedente natural.
 
Se realmente acredito que todo o mundo natural ao nosso redor é criação de Deus, cada coisa representa uma oportunidade de experimentarmos a Sua presença. Atrevo-me a incluir as coisas mais difíceis de compreender como uma fêmea-insecto a comer o macho após ser fecundada. Sentiram o aperto no peito de como será muito difícil (senão impossível) compreender que essa parte da natureza poderia alguma vez servir de ponto para experimentarmos a presença de Deus? Por isso, não será com a primeira impressão daquilo que observamos na natureza que abrimos o nosso coração ao precedente natural.
 
O precedente natural é o contacto físico com a natureza predispondo-nos a tomarmos, em primeiro lugar, consciência da nossa humanidade corporal. Precisamos de sentir o pés bem assentes na terra, respirar o ar puro que flui e contemplarmos com o olhar a beleza sinfónica da diversidade presente na geosfera e biosfera com a sua multiplicidade de cores e odores. Só depois de uma experiência assim pode o corpo abrir a mente para a realidade de sermos a parte do mundo físico que pensa sobre si mesmo. Será essa experiência de pensar que nos desperta para a realidade da consciência de fazermos parte do mundo e de haver uma dimensão, à qual chamamos de espiritual, que está para além do tempo e do espaço sentido no corpo-mente. A consciência de haver algo maior do que nós, dentro de nós.
 
O precedente natural abre o coração, compreendido como a totalidade do nosso ser, para a possibilidade de fazermos a cada momento uma experiência com Deus. Um dia perguntavam-me como se podia amar e ser amado se, ao amar incondicionalmente, nada nos garante que seremos amados. Logo, para quê o esforço? Reconheci o valor desta dúvida e ao escutá-la, procurava fazer um vazio de ideias dentro de mim. No meio da escuta sincera, uma palavra emergia na mente e sentia que a podia partilhar. Digo-lhe então—«amar sem esperar ser amado implica estar ciente da posição de vulnerabilidade em que nos colocamos. Pois, só posso amar com autenticidade, se abrir o coração e colocando-me, corajosamente, numa posição de vulnerabilidade diante do outro. Por isso é difícil, mas é na vulnerabilidade que amadurecemos o modo de amar incondicionalmente.»—Ele olhou para mim. Fez uma pausa. Sorriu e disse que não tinha pensado nisso, compreendendo. Senti que através da palavra vulnerabilidade, este jovem encontrou a clareza, uma das muitas características da experiência mística de Deus quando abrimos o coração. Antes de estarmos juntos, este jovem tinha passeado pela natureza local.
 
Fazer uma experiência mística de Deus implica não sabermos quando esta acontecerá. Num mundo cada vez mais artificializado, temo que seja cada vez mais difícil encontrar estes espaços em que nos predispomos a sermos surpreendidos por Deus, do modo que Ele quiser. Porém, a minha experiência e a de muitos escritores de espiritualidade quando leio as suas meditações, é a de que o precedente naturalpode ser um primeiro passo no caminho de reencontro com a dimensão espiritual da vida humana. E, assim, reencontrar a nossa própria humanidade, naturalizada.
 
 

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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