Aos reis magos
Já na extremidade da paróquia, a habitação social surge como uma peça única, totalmente branca, sobretudo agora, depois das obras de reabilitação do edifício promovidas pela Câmara. Para chegar até ao elevador do n. 9 é preciso passar por um corredor sombrio, empurrando a porta, sempre aberta, que dá para o hall. O elevador do n. 9 sobe até quase ao limite do prédio e é nesse território, longe da agitação da rua, que vive a Sra. Maria. Limitada pelas dores nas articulações dos membros inferiores, a Sra. Maria raramente sai de casa exceto em ocasiões pontuais e só com a ajuda dos familiares. Vive, como costuma dizer, no seu convento e é como uma verdadeira consagrada que gere a rotina diária. Mal se levanta, vai à janela virada a Oriente onde procura, entre os muitos prédios que entretanto surgiram, as torres da Igreja de S. João de Deus. Focada nos sinais do templo sagrado, volta a entrar nele para se ajoelhar, em adoração, diante do Santíssimo Sacramento, como se ainda tivesse 30 anos. Depois dá meia dúzia de passos para a frente, até à sala, onde permanece grande parte do dia.
É visitada pelas vizinhas e amigas que procuram nela alguma palavra de sabedoria e consolo. Juntas queimam o pouco tempo que a idade já avançada sinaliza como o derradeiro. Recordam outros tempos, a mudança da aldeia para a cidade, a transformação que se operou, como tudo era diferente nesse tempo longínquo, nessa cultura marcadamente rural e cristã. Tudo parece agora distante e pueril, mas ela não se lamenta nem se queixa do presente. Acredita naturalmente na bondade das pessoas porque acredita em Deus. Por isso, mesmo estando retida num espaço exíguo, procura-o como o procuraram os reis magos pelas estradas perigosas deste mundo. E se todas as manhãs a Ele se dirige numa oração de louvor e ação de graças, é ao entardecer, quando o sol se afunda na linha do horizonte tingindo o céu de cores avermelhadas, que a Sra. Maria se abeira da janela virada para o Ocidente e fixa o olhar na já iluminada torre da nova igreja da sua paróquia, para retomar a oração, agora em tons de prece. Os carros rasgam rapidamente as grandes avenidas mesmo ao lado do prédio e o ruído das crianças no ringue de futebol, no fundo da rua, misturado com as gargalhadas dos adolescentes, sobe até ao andar onde a Sra. Maria oferece a Deus as suas orações. Ela reza pela conversão dos Herodes deste mundo, os homens investidos de poder nos cargos políticos, nas grandes empresas e na comunicação social, aqueles que, com astúcia discreta, continuam a impedir que o verdadeiro Rei seja conhecido. Reza pelos novos pastores para que, como na noite santa, superem o medo paralisador. E reza, em especial, pelos muitos magos que, de coração sincero, procuram adorar o Messias. «Oxalá eles o encontrem como eu o encontrei», disse-me um dia.