Re-member

Liturgia 25 março 2018  •  Tempo de Leitura: 4

É um gesto corajoso e pouco cómodo, diga-se a verdade, que contrataria a perceção generalizada que muitos entendem sobre o que é ser cristão. «Sou batizado», dizem, «vou a Fátima» e depois? Há alguns anos, durante a quadra natalícia, participei numa campanha de natal de rua com os membros da comunidade que consistia em cantar e distribuir postais. A mensagem era explicitamente cristã. Os que passavam por nós, e se sentiam interpelados, julgavam que éramos membros de alguma seita porque «um católico não vai para rua…». Com efeito, mesmo quando nos apresentamos com o rótulo de praticantes, persiste um comportamento marcadamente passivo. Os verbos que utilizamos para falar da vida cristã denunciam esta postura. Dizemos «receber» sacramentos, «assistir» à missa (algumas pessoas ainda dizem «ouvir» missa), «rezar» como quem repete uma fórmula cujo o conteúdo não compreende, etc. Estas ações estão confinadas a um espaço bem definido, privado, como se a existência cristã não devesse ter uma expressão pública, nem o atrevimento profético de interpelar os outros.

 

Fomos em grande parte formatados por uma cultura em que a Igreja teve um papel central na sua organização. Em grande parte, ela determinava os ritmos dos tempos de acordo com as festas litúrgicas – natal, páscoa e solenidades várias. Nascíamos batizados e tudo acontecia por uma espécie de contágio. Hoje, nesta sociedade com profundas e rápidas transformações, já não existe essa evidência. É certo que ainda são muitos os batizados, mas apenas alguns, uma pequena minoria, está disposta a caminhar por causa d’Ele nas ruas da nossa cidade.

 

A procissão dos ramos é assim um sinal que desafia a maioria, cómoda e passiva, a multidão adormecida ou simplesmente interessada nos aspetos mais vantajosos da experiência religiosa. É a tal multidão que olha para a cruz como ornamento, mas não a venera como lugar de sacrifício, porta aberta para a eternidade, simbolo de amor e de entrega incondicional.

 

Mesmo sem as técnicas e estratégias das modernas manifestações publicas, a singela procissão dos ramos simboliza a existência cristã na sua essência. Empunhando ramos como há 2000 anos, somos o pequeno rebanho que, unido pela mesma fé, deposita em Jesus a sua esperança. Ele é o nosso redentor. Durante o ano, por diferentes ocasiões percorremos os mesmos trajetos desempenhando os papeis de pais, mães, profissionais, atletas. Hoje, domingo de ramos, caminhamos como discípulos de Jesus.

 

Este gesto encerra um paradoxo: a comunidade recua para avançar. Ela recua no tempo ao relembrar a entrada triunfal de Jesus, o pobre filho de Deus, o Príncipe da Paz, na cidade santa de Jerusalém. Curiosamente a palavra inglesa «remember» evidencia o sentido de pertença a um grupo. «Re-member» tornar-se membro de uma família. Neste sentido, a procissão, mesmo incómoda e arriscada, diz o que somos chamados a ser: membros de uma família, um corpo que avança confiante.

 

Amanhã será dia de Páscoa. Hoje celebramos a d’Ele enquanto esperamos pela nossa.

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