Um pesadelo chamado livros

Livros 10 julho 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Há momentos de revelação. Momentos em que nos apercebemos de que um aspeto da nossa vida tem um peso desproporcional na forma como pensamos, agimos e somos. Nas últimas semanas, dei-me conta do mal que me têm feito os livros. Por dever (estou a escrever um tese) e também por vício (isto não tem outro nome!), é muito raro o dia em que não repito esse gesto fatal de abrir um livro e de ler nem que seja uma, duas páginas. Hoje, quero, por isso, fazer aqui o anti-elogio da leitura. Essa praga secular da qual, graças à televisão, ao computador e, sobretudo, às redes sociais (São Zuckerberg, rogai por nós!), tantos de nós já se libertaram.

 

Os livros, com o seu ar de coisa nenhuma, têm o condão de abrir portas para mundos novos e, tantas vezes, inesperados. A nossa vida já é um exercício árduo de manter os pés bem assentes na terra e de evitar, tanto quanto possível, surpresas e, depois, num ápice, com esse gesto quase imaterial de folhear um livro, de passar os olhos pelas palavras alinhadas em frases e parágrafos e de captar o sentido, somos forçados a ver diferente, a pensar melhor. A “paz de espírito”, esse dom maior de uma vida vivida à superfície e entregue às tarefas e prazeres do momento, é logo a primeira vítima. E, se nos decidimos a continuar, arriscamo-nos até a perder mais do que isso: conheço pelo menos uma pessoa a quem a leitura de umas hagiografias acabou por lhe virar a vida totalmente do avesso. Graças a Deus (e a tantos autores de excelência), há cada vez mais livros que não abrem portas nenhumas. Ou melhor, abrem portas atrás das quais só se esconde uma parede ou um espelho. É o ideal. Os “livros-parede” podem ser um bocadinho aborrecidos ao princípio, mas finalmente só trazem benefícios: não aprendemos nada e, no final, estamos exatamente no sítio onde começámos. Já os “livros-espelho” são um autêntico bálsamo para o ego: também pouco ou nada nos ensinam, mas têm a vantagem de confirmar que a única coisa que vale mesmo a pena reter é que os lugares-comuns que professamos são sabedoria divina.

 

Os “livros-parede” podem ser um bocadinho aborrecidos ao princípio, mas finalmente só trazem benefícios: não aprendemos nada e, no final, estamos exatamente no sítio onde começámos.

 

Outro problema maior com os livros é que estas criaturas exigem uma perseverança que já não se usa. Qual é o idiota que se vai dar ao trabalho de ler páginas e páginas de texto quando 140 caracteres (ou 280, vá!) são mais do que suficientes para resumir tudo o que há para dizer? A culpa aqui é de uma certa psicologia barata que resiste em desaparecer: a ideia de que o esforço é uma coisa boa e que é preciso educar para a profundidade. Felizmente, há cada vez mais seres humanos – a começar por grandes líderes políticos! –  que já perceberam que o slogan é a única coisa que interessa. Um bom slogan, mais duas ou três frases de generalidades ou insultos, e já está tudo dito e… lido! Na verdade, para quê gastar horas a acompanhar a personagem A ou B, ou a tentar entender as subtilezas de um argumento, se já está tudo, aqui e agora, à distância de um clique ou de um scroll?

 

Finalmente, os livros, sobretudo os maus livros!, são o pior inimigo dessas certezas absolutas que tornam a vida humana tão mais fácil e as conversas de café tão mais agradáveis. A pessoa passa anos a fio a desenhar na sua cabeça um “mundo a preto e branco”, no qual não há dúvidas quem são os bons e quem são os maus, e basta um livrinho, até mesmo um romance, para deitar tudo a perder. Começam a aparecer uns cinzentos, e já nem o branco nos parece tão imaculado, nem o preto tão uniforme. Por exemplo, depois de ler Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai da autora alemã Jenny Erpenbeck, é difícil manter-se fiel a essa ideia revolucionária de que todos os refugiados são uns párias e potencialmente criminosos.

 

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