Os três quartos da casa-família
Uma casa é constituída por espaços diferentes em que se consuma a existência dos seus habitantes. Evocamos três locais simbólicos, de maneira muito essencial, conscientes de que neles se ocultam obras e dias ora monótonos ora exaltantes.
O quarto da dor
Tinha razão Tolstoi quando, no seu célebre romance “Anna Karenina”, afirmava que «as famílias felizes se assemelham todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira». A própria Bíblia é disso testemunha constante, a partir da brutal violência fratricida de Caim sobre Abel e das lutas entre os filhos e esposas dos próprios patriarcas Abraão, Isaac, Jacob, para passar depois à tragédia que ensanguenta a família de David com o filho Absalão, aspirante parricida, até chegar às múltiplas dificuldades que pontuam essa admirável narrativa familiar que é o livro de Tobite ou aquela amarga confissão de Job abandonado e isolado: «Os meus amigos retiraram-se como estranhos. Os meus parentes abandonaram-me, e os que me conheciam esqueceram-se de mim (…). A minha mulher sente repugnância do meu hálito, e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (19, 13-14.17). O próprio Jesus nasce no seio de uma família de refugiados, entra na casa de Pedro onde a sogra está doente, deixa-se tocar pelo drama da morte na casa de Jairo e na de Lázaro, escuta o grito desesperado da viúva de Naim ou do pai do epiléptico de uma vila aos pés do monte da Transfiguração.
Nas casas que visita encontra publicanos como Mateus-Levi e Zaqueu, ou pecadoras como a mulher que se introduz na casa de Simão, o leproso; conhece as ânsias e as tensões das famílias decantando-as nas suas parábolas: dos filhos que deixam a casa para tentar a aventura (Lucas 15, 11-32) até aos filhos difíceis de comportamentos inexplicáveis (Mateus 21, 28-31) ou às vítimas de violência (Marcos 12, 1-9). E interessa-se também pelas bodas que correm o risco de se tornarem embaraçosas pela ausência de vinho (Jo 2, 1-10), assim como conhece o pesadelo pela perda de uma moeda numa família pobre (Lucas 15, 8-10).
Poderíamos continuar a descrever longamente a vastidão dos quartos da dor, chegando até aos nossos dias, quando as paredes domésticas registam muitas vezes a desconstrução de todo o edifício familiar numa espécie de terramoto. A lista das antigas lacerações dos divórcios, rebeliões, infidelidades, abortos e assim por diante alarga-se a novos fenómenos socioculturais como o individualismo, a privatização, os surpreendentes e não raro desconcertantes percursos bioéticos da fecundação “in vitro”, da barriga de aluguer, dos casais homossexuais e das relativas adoções, das teorias do género, da clonagem, da monoparentalidade, da pornografia, entre outros.
Uma lista de realidades que sacode o sistema tradicional das famílias e que torna a casa em alguma coisa de “líquido”, plasmável em formas moles e mutáveis que impõem contínuas reflexões de natureza cultural, social e ética. Ficamos por aqui, confiando aos outros esta visita difícil ao espaço das dificuldades e das interrogações, um espaço de fronteiras incertas que o tornam um recipiente diversas visões do mundo.
O quarto do trabalho
Junto do quarto da dor encontramos outro local onde ferve a obra humana, mas que, infelizmente, não raramente nos nossos dias está deserto e parece abrir as suas portas quase automaticamente para o espaço do sofrimento acima descrito. Falamos do quarto do trabalho. No projeto divino da criação, o ser humano foi convidado a «tomar posse» e a «governar» a criação, simbolicamente representada como um jardim rico, fértil e populoso (Génesis 1, 28).
A narrativa bíblica sublinha – usando em hebraico os mesmos verbos do culto e da aliança com Deus, “‘abad” e “shamar”, “servir” e “observar” – que «o Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para que o cultivasse e guardasse» (2, 15). Depois de tudo, a própria representação do Criador é a de um trabalhador que opera (“bara’”, “criar”, é o verbo do artesão) durante uma semana laboral de seis dias (1, 1), ou também de um pastor (Salmo 23) ou de um agricultor (Salmo 65, 10-14) ou de um tecelão ou de um oleiro que modelam as suas obras (Génesis 2, 7; Jeremias 18, 6; Salmo 139, 13-16; Job 10, 8-11).
Deus, na sua obra de criação, não é decerto semelhante a um guerreiro destruidor como era concebido nas antigas cosmologias do Próximo Oriente. É a esta luz que o salmista retrata um delicioso interior familiar que tem no centro uma mesa festiva onde está sentado o pai que se pode alimentar a si próprio, a sua esposa, comparada a uma vide fecunda, e os filhos, vigorosos rebentos de oliveira, através da «fadiga das suas mãos» (Salmo 128, 2-3). É uma felicidade que nasce do empenho duro do trabalho.
É uma serenidade que alastra também à sociedade e às gerações futuras: «Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém (…) e chegues a ver os filhos dos teus filhos» (128, 5-6). O trabalho, com efeito, é um dom divino, como sugere o Salmo anterior, o 127: «Se o Senhor não guardar a cidade (…) de nada vos serve levantar muito cedo e trabalhar pela noite dentro, para comer o pão de tanta fadiga» (1-2). Disso é também consciente a “mater famílias” cujo retrato sela o livro dos Provérbios, mulher sábia e fiel a Deus cujo trabalho é celebrado em todos os quotidianos, atraindo o louvor do marido e dos filhos (31, 10-31). O próprio apóstolo Paulo mostrar-se-á orgulhoso por ter vivido sem ter pesado a ninguém, graças à obra das suas mãos, de tal modo que impõe a regra férrea: «Quem não trabalha também não coma» (2 Tessalonicenses 3, 7-12; cf. Atos 18, 3).
Dito isto, compreende-se que o desemprego e a precariedade se transformem em sofrimento, como se regista no delicado e emocionante livrinho de Rute e como recorda Jesus na parábola dos trabalhadores à jorna, sentados em ócio forçado na praça da vila (Mateus 20, 1-16), ou como Ele experimenta no próprio facto de ser muitas vezes rodeado de miseráveis e esfomeados, tal como aconteceu ao profeta Elias, que se encontrou diante de uma viúva com o filho, ambos abatidos pela fome (1 Reis 17, 7-18). É isto que a sociedade contemporânea está a viver de maneira por vezes trágica, e esta ausência de trabalho transforma-se num verdadeiro atentado à solidez da “casa-família”.
Não se pode também esquecer a degeneração que o pecado introduz na sociedade quando o ser humano se comporta como tirano em relação à natureza, devastando-a, explorando-a egoisticamente e brutalmente, segundo normas despóticas, a tal ponto que torna o trabalho uma sombria alienação, marcada pelo suor pessoal, pela desertificação do solo (Génesis 3, 17-19) e pelos desequilíbrios económico-sociais contra os quais se erguerá forte e clara a denúncia constante dos profetas, a começar por Elias (1 Reis 21) e Amós, para chegar ao próprio Jesus (Lucas 12, 13-21; 16, 1-31). O enriquecimento desenfreado, fonte de injustiças, é no fim de contas uma idolatria, como escrevia o teólogo Paul Beauchamp, na sua obra “A lei de Deus”: «O homem adora Deus porque é Deus quem o fez, o homem adora o ídolo porque é ele próprio a tê-lo feito. Eu adoro aquele que me fez ou adoro aquele que eu fiz (…). A idolatria atinge o trabalho, como certas doenças atingem mais órgãos do que outros».
O quarto da festa
O terceiro e último quarto da nossa casa simbólica é o da festa e da alegria familiar. Esta, como sugeria o filósofo Søren Kierkegaard, deve ter a porta que «se abre para o exterior, de tal modo que só pode ser fechada indo para fora de si mesmo». E comunicar com o exterior pode ser complexo e árduo porque se apresentam fenómenos inéditos como a globalização, a civilização digital com a sua rede que envolve o globo, o fermento da ciência que não teme percorrer caminhos longínquos, como no caso das neurociências e das biotecnologias, o encontro com rostos diferentes e a chamada “mestiçagem” de culturas, e assim por diante.
Esta multiplicidade de experiências é, no entanto, fecunda e pode enriquecer a festa da família, desde que ela saiba guardar no diálogo a sua identidade cristã de forma não agressiva e integralista, mas saiba também não se desbotar e descolorir num genérico e vago sincretismo. É preciso, portanto, recordar que a entrada neste quarto solar acontece não raro depois de uma longa espera e uma intensa preparação, como afirmava de maneira sugestiva no seu “Diário” o escritor francês Jules Renard: «Se se quer construir a casa da felicidade, deve recordar-se que o quarto maior deve ser a sala de espera».
Este espaço jubiloso está ligado ao do trabalho. A propósito, é significativa mais uma vez a narrativa de abertura da criação segundo o Génesis. Nessas páginas emerge um elemento simbólico dialético que liga precisamente trabalho e festa. O homem é considerado o vértice da criação: não só é uma realidade «bela/boa» (“tôb”), como as outras criaturas, mas é «muito bela/boa» (1, 31). E todavia ele é criado ao sexto dia, e o seis, na simbologia numérica bíblica, é indício de imperfeição, sendo o sete o sinal da plenitude. O homem é, portanto, prisioneiro do limite temporal, espacial, físico e metafísico. Contudo, pode evadir-se da prisão da sua natureza criatural e do próprio carácter ferial quando celebra o sábado, o sétimo dia, a festa, a liturgia, a oração. Esse dia, com efeito, é o tempo de Deus, o horizonte transcendente em que ele “repousa” na plenitude da sua glória. Por isso o sábado é descrito pelo Génesis como um tempo bendito e consagrado: «Deus abençoou o sétimo dia e consagrou-o» (2, 3), tornando-o a sede da vida plena e perfeita, o tempo no tempo, marcado pela eternidade.
O homem e a mulher, quando celebram a liturgia festiva, entram no templo/tempo eterno divino. Como escrevia o pensador místico judeu Abraham J. Heschel no seu conhecido texto sobre o “Sábado” (1951), «durante seis dias vivemos sob a tirania das coisas do espaço; o sábado coloca-nos em sintonia com a santidade do tempo. Neste dia somos chamados a participar naquilo que é eterno no tempo, a voltarmo-nos dos resultados da criação para o mistério da criação, do mundo da criação à criação do mundo». Neste contexto é significativo registar na dupla redação do Decálogo (dez Mandamentos) a diferente motivação que justifica a festa sabática. De um lado, em Deuteronómio 5, 12-15, sublinha-se a saída do regime do trabalho ferial, reevocando a libertação da alienação da opressiva escravidão egípcia; do outro, em Êxodo 20, 8-11, celebra-se o ingresso no repouso perfeito e eterno do sétimo dia, bendito e consagrado por Deus após os seis dias da criação. A festa é, portanto, libertação do limite e participação na eternidade, é comunhão com Deus que arranca a criatura humana do sexto dia e introdu-la na festa do sétimo, onde ela “repousa” como Deus.
É por isso que a Carta aos Hebreus descreve a vida eterna como um sábado sem fim, não mais pressionado pela fuga do tempo nem ocupado pelos ídolos terrenos ou marcado pelo pecado humano (3, 7 – 4, 11). É por isso que o livro apócrifo judaico “Vida de Adão e Eva” afirma que «o sétimo dia é o sinal da ressurreição e do mundo futuro». É por isso que a festa primária do Israel bíblico, a Páscoa, é por sua natureza familiar e é colocada no espaço da tenda doméstica (Êxodo 12): ela é a celebração da saída-êxodo do trabalho opressivo imposto pelo faraó e é o início do ingresso na terra prometida, que se torna um símbolo da pátria celeste, como aparece explicitamente na trama quer do Livro da Sabedoria quer do Apocalipse.
É por isso que a celebração eucarística das origens cristãs tinha como sede própria a “ecclesia” doméstica e como contorno o banquete familiar (1 Coríntios 11, 17-33). Era lá que os pais se tornavam os primeiros arautos da fé para os seus filhos. Já no antigo Israel a família era o espaço da catequese: é isto que brilha na narrativa da celebração pascal e que será explícito na “haggadah” judaica, ou seja, na “narração” dialógica que acompanha o rito pascal. O Salmo 78 exalta o anúncio familiar da fé: «O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios filhos; para que pusessem em Deus a sua confiança e não esquecessem as suas obras, mas obedecessem aos seus mandamentos» (78. 3-7).
Portanto, a festa autêntica não é nem um horizonte vazio e inerte, como Tácito etiquetava o sábado dos judeus, nem é um mero fim de semana, mas é um acontecimento positivo, é sinal de uma transcendência tornada disponível à criatura, é dom de uma comunhão com Deus, é o descanso eterno que os cristãos auguram aos seus defuntos (“requies aeterna”) e que já é antecipadamente saboreada na liturgia terrena do «dia do Senhor», o «domingo» (Apocalipse 1, 10). Podemos, por isso, afirmar com Bento XVI que «o trabalho e a festa estão intimamente ligados à vida das famílias: condicionam-lhes as escolhas, influenciam as relações entre cônjuges e entre pais e filhos, incidem na relação da família com a sociedade e com a Igreja. A Sagrada Escritura (cf, Génesis 1-2) diz-nos que a família, o trabalho e o dia festivo são dons e bênçãos de Deus para nos ajudar a viver uma existência plenamente humana».
Estas palavras do papa, extraídas da Carta para o 7.º Encontro Mundial das Famílias, resumem a nossa visita ideal à sala da festa que se abre na casa simbólica que descrevemos. Recorrendo ao célebre moto beneditino, podemos dizer que o “labora” do compromisso ferial deve abrir-se ao “ora” da liturgia festiva, conservando no entanto a unidade do “ora et labora” semanal. A porta da casa-família escancara-se, assim, ao outro lado do monte onde está situada, um lado iluminado pelo sol da eternidade e do infinito. Dito noutras palavras, o quarto da festa tem diante de si um terraço com vista para o céu e para o futuro escatológico, quando todas as tribos de Israel e «uma multidão imensa e inumerável de toda a nação, família, povo e língua» estiverem «todos de pé diante do trono e diante do Cordeiro, envolvidos em cândidas vestes, com ramos de palma nas suas mãos» (cf. Apocalipse 7, 4-9).
À medida que contemplamos a casa-família que somos chamados a erigir na nossa história, na esteira do desejo que Deus expressou nas Escrituras, ressoa uma última palavra: é a da esperança, virtude muito realista, como afirmava o poeta francês Charles Péguy, que a ela dedicou “O pórtico do mistério da segunda virtude” (1911): «É esperar a coisa difícil/ a voz baixa e vergonhosamente./ E a coisa fácil é desesperar/ e é grande tentação». Certamente é difícil manter sólida esta casa, como repetia o grande Montaigne nos seus “Ensaios”, porque «governar uma família é pouco menos difícil do que governar um reino». No entanto o amor confiante e generoso pode fazer milagres. Até um pessimista como o dramaturgo noruegês Henrik Ibsen, na sua amarga “Casa de bonecas” (1879), não hesitava reconhecer – ainda que em chave negativa – que «a vida de família perde toda a liberdade e beleza quando se funda só no princípio do “eu dou-te” e “tu dás-me”». Cristo introduziu, antes, este outro princípio: «Não há amor maior do que quem dá a vida pela pessoa que ama» (João 15, 13), superando assim a própria lei, mesmo elevada, do «amar o próximo como a si mesmo».
Imaginemos, então, intuir no final, num quarto da nossa casa simbólica, esse delicioso cenário que o salmista esboçou com apenas 11 vocábulos num texto composto por apenas 30 palavras hebraicas. É o Salmo 131, que introduz na família e na fé essa virtude que nos nossos dias é brutalmente ignorada, a ternura. Com acontece noutros passos da Bíblia (Êxodo 4, 22; Isaías 49, 15; Salmo 27, 10), o laço entre o fiel e o seu Senhor é modelado na relação parental. Aqui é a doce e terna intimidade que intercorre entre uma mãe e o seu filho. Não se trata, porém, de um recém-nascido que, depois de ter sido aleitado, dorme placidamente nos braços da sua mamã, mas – como explicita o vocábulo hebraico “gamûl” – descreve uma criança saciada que se une conscientemente à mãe, numa relação de intimidade consciente e não meramente biológica.
Canta, então, o salmista: «Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao colo da mãe; a minha alma é como uma criança saciada» (2). Podemos também fazer fluir outra cena paralela, a de um pai profeta, Oseias, que colocava na boca de Deus Pai este solilóquio familiar que imaginamos entrever desde uma das janelas da nossa “casa” simbólica: «Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egito o meu filho. Mas, quanto mais os chamei, mais eles se afastaram; ofereceram sacrifícios aos ídolos de Baal e queimaram oferendas a estátuas. Entretanto, Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços, mas não reconheceram que era Eu quem cuidava deles. Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer» (11, 1-4).
Com este último olhar que entretece fé e amor, graça e compromisso, família humana e Trindade divina, contemplamos pela última vez a casa que a Palavra de Deus confia às mãos do homem, da mulher e dos filhos para que componham «uma comunhão de pessoas, sinal e imagem da comunhão do Pai e do Filho no Espírito Santo. A sua atividade procriadora e educativa é o reflexo da obra criadora do Pai. A família é chamada a partilhar a oração e o sacrifício de Cristo. A oração diária e a leitura da Palavra de Deus corroboram nela a caridade» (Catecismo da Igreja Católica, 2205).
[Card. Gianfranco Ravasi]