O Regresso – meditação pascal
No tempo em que vivemos, a paixão do Ressuscitado que acabamos de celebrar, perdura a imagem “única” do Papa Francisco que, ao cair a noite, atravessa sozinho o vazio “insólito” da praça de S. Pedro. O Papa quer contemplar a imagem de Cristo Crucificado e entregar-lhe o “sacrifício” da nossa humanidade desafiada, nas suas palavras, a “viver no mesmo barco” a vastidão e os efeitos desta poderosa e fatal epidemia.
Como tinha feito em Auschwitz, o Papa Francisco fez do seu silêncio um grito de esperança. Na fragilidade visível do seu corpo cansado, envolveu-nos a todos no mistério do abandono de Cristo e devolveu-nos a fortaleza que brota permanentemente da ferida do Seu lado aberto. Foi um momento belo e terrível.
Ao ver o Papa, de pé, diante de Cristo desfeito na Cruz, como pontífice das nossas aflições e servo das nossas esperanças, atrevo-me a discorrer sobre o que terá passado no seu coração e imagino a sua oração por cada um de nós. A verdade deste encontro não engana e a sua prece, que formulo nas palavras do meu imaginário, será escutada: “Jesus, que queres que eu faça para que se afaste do mundo o cálice desta epidemia?” É na lealdade de quem bebe do mesmo cálice que se faz hoje a nossa celebração pascal. Assim fez Deus. Na cruz, Jesus bebeu o cálice da dor do mundo. Como poderia o Papa e cada cristão beber o cálice de Cristo sem beber o fel da dor do mundo?
Que vejo eu quando olho para Aquele que trespassaram? Vejo o mundo e a dor dos “sem amor”. Na nudez, vejo a mais pura das integridades; na coroa real, os espinhos dos sem justiça, dos sem nome, dos sem nada nem ninguém; nas suas mãos cravadas, o combate entre a resistência e a superação e no seu coração aberto vejo como o seu amor mata o meu pecado. Tudo por mim. Ao “carregar-nos” aos seus ombros, Jesus amou-nos, abraçou-nos e libertou-nos. Ninguém conhece o peso da sua cruz enquanto não carrega sobre si a cruz do outro.
Não há vida sem cruz. O trágico é que pode haver cruz sem Cristo. Ter uma cruz sem Cristo é viver num absurdo existencial, no jogo fatal da sorte ou do azar como se fossemos reféns do mistério imponderável das forças do oculto e do destino.
Rahner, o grande teólogo do século passado, dizia: “se queres saber quem é Deus, basta que te ajoelhes junto à sua cruz”. A Cruz é a imagem mais pura que podemos ter de Deus. A epifania da Cruz mostra-nos que Deus não nos salva da cruz mas na cruz. Deus não nos protege da dor mas na dor.
Deus conhece a cruz da epidemia que se abateu sobre nós. A Covid-19 que nos confina, assusta e mata, não é um castigo de Deus, é uma das suas cinco chagas. Cristo, ontem como hoje, assume sobre si as nossas dores, as nossas enfermidades. Nós sabemos que “pelas suas chagas fomos curados”. Não há vida sem cruz. O trágico é que pode haver cruz sem Cristo. Ter uma cruz sem Cristo é viver num absurdo existencial, no jogo fatal da sorte ou do azar como se fossemos reféns do mistério imponderável das forças do oculto e do destino. A Cruz de Cristo revela que o homem não está “abandonado” e entregue a si próprio para viver a própria vida.
“Liturgicamente”, terminou o tempo da quaresma mas a sua “austeridade” parece que não nos vai abandonar. Do mesmo modo, é possível que a emergência sanitária em que nos encontramos nos confine a uma alegria mais contida, pobre e menos espetacular. Esta alegria brota da cruz como um filho nasce do parto da sua mãe. A alegria da Páscoa não é a alegria sem dor, do sucesso sem suor, do mérito sem trabalho, do amor sem perdão. É a atitude “pobre” e “nobre” dos recomeços, dos primeiros frutos da seara, da surpresa e do espanto.
No domingo passado, terminámos a oitava da Páscoa. Os dias desta semana foram um único Domingo e em todos eles cantamos o Glória e o Aleluia. Nas casas perduram as cruzes enfeitadas, as amêndoas, a toalha de linho sobre a mesa, o canto e a alegria dos “sortudos” que resistem à epidemia, e o coração apertado dos que vivem o luto sem direito à despedida.
A família redescobriu o sacerdócio da sua vocação laical e celebrou no próprio domicílio a morte e a Ressurreição do Senhor. Não sei se será legítimo ver neste limite sacramental prenúncios de uma nova eclesialidade. Sei que os sinos tocaram mas a missa foi celebrada sem fiéis. O pão ázimo partiu-se mas não chegou às nossas mãos. O lava-pés foi feito em cada hospital e a via-sacra de Cristo teve direito a máscara, luvas, zaragatoas e ventiladores. Por todo o lado, em particular nos lares de idosos, a solidariedade gerou mais verónicas e cireneus do que o habitual. A cruz não foi beijada e cada um descobriu a sorte de não ser Judas. No colo das mães encontramos a Pietá e o tesoiro do amor sem preço. O círio pascal acendeu-se, mas os catecúmenos ainda esperam o dia do seu Batismo.
Com Cristo descobrimos que a morte tem os dias contados, que as quarentenas não duram para sempre. Chegou o tempo de nos levantarmos, de dissipar as nossas angústias e ansiedades e começar a habitar prudentemente o mundo fora das nossas casas.
Quem nos removerá a pedra do sepulcro para vivermos os novos tempos de incerteza que virão? Vamos recomeçar, gradualmente, a vida sem voltarmos ao que a vida era antes. Levaremos connosco as marcas desta paixão mas não ficaremos crucificados para sempre. À sombra dos ramos da Cruz despertaremos como uma nova primavera. Com Cristo descobrimos que a morte tem os dias contados, que as quarentenas não duram para sempre. Chegou o tempo de nos levantarmos, de dissipar as nossas angústias e ansiedades e começar a habitar prudentemente o mundo fora das nossas casas.
A cruz de Cristo mudou o sentido da dor e do sofrimento humano. Não é mais o sinal do castigo ou da maldição. A fragilidade que experimentamos nesta Páscoa chama-nos à humildade e pode, se quisermos, mudar-nos a “marca egoísta” e o estilo arrogante e consumista de viver. O virtual é virtuoso mas não nos basta. Ocupa, resolve, mas não substituiu a alma e o “toque” da relação.
Jesus ressuscitou confirmando que Ele é o Cristo e que nós somos seus irmãos. Não ressuscita como Lázaro, fisicamente reanimado e desejoso do regresso à vida anterior. Ressuscita transfigurado. É o mesmo e outro. Jesus ressuscita com as chagas da paixão. Há “oiro” nas suas feridas sagradas. Sem chagas, o ressuscitado seria um fantasma. Ressuscita com um corpo “glorioso”, mas com a mesma identidade e missão. Ressuscita não para se vingar mas para consolar, pacificar, perdoar e enviar. Não escolhe outros discípulos, mas confirma e absolve os traidores.