Não faz mal não estar bem
Nestes tempos tão incertos a Mimi Froes encheu-nos a Páscoa com uma canção que vale a pena ouvir para acalmar o coração. É uma música que nos dá colo e embala. Simples, serena e muito verdadeira. Roubei-lhe o título para estes pensamentos. Espero que ela não se importe! Há coisas que, depois de nascerem, passam a ser de todos.
Faço, em primeiro lugar, uma declaração de intenções! Este texto não é um elogio da tristeza nem uma profecia da desgraça. Obviamente “não estar bem” não é bom nem desejável. Mas creio ser importante desfazer uma espécie de ditadura que às vezes nos é imposta de uma humanidade impecável, sempre bem, performativa. Simplesmente, não corresponde à verdade. Nem do que sentimos, nem do que vivemos, nem do que somos, nem sequer do que acreditamos!
Byung-Chul Han, em “A sociedade do cansaço”, defende que a negatividade do “dever” da sociedade que nos antecedeu foi hoje substituída pela excessiva positividade do “poder fazer”, onde a máxima “Yes we can!” encaixa na perfeição. Mas, de facto, nem sempre podemos.
O mais paradoxal é que um dos fatores apontados como causa da depressão é o facto de acharmos que não podemos estar deprimidos, que temos de atingir os objetivos custe o que custar, que devemos estar bem, hiper-positivos, em modo selfie, prontos para entrar nas redes a qualquer momento, com aquele sorriso que angaria muitos likes e comentários simpáticos.
É neste contexto que crescem hoje as doenças do foro neuronal, como a depressão, o défice de atenção, a hiperatividade ou o burnout. E o mais paradoxal é que um dos fatores apontados como causa da depressão é o facto de acharmos que não podemos estar deprimidos, que temos de atingir os objetivos custe o que custar, que devemos estar bem, hiper-positivos, em modo selfie, prontos para entrar nas redes a qualquer momento, com aquele sorriso que angaria muitos likes e comentários simpáticos.
Pelo contrário, a experiência comum diz-nos que não estamos sempre bem. Nem sempre acordamos com o mesmo estado de espírito, nem sempre as condições e circunstâncias da vida nos vão ser favoráveis, nem sempre os sentimentos que carregamos são os mais leves e alegres.
Como explica Margarida Cordo, psicóloga, “por diversas razões, há momentos da nossa vida em que, apesar de tudo o que foi dito, apesar de sabermos viver um dia de cada vez, apesar de sabermos não sofrer por antecipação, apesar de sabermos sentir gratidão e valorizar o que temos, apesar de confiarmos que o melhor acontece no melhor momento, apesar de nos sentirmos «donos» de uma fé serena e sólida, apesar de… , não conseguimos evitar a tristeza. E é por isso que temos de saber que, quando, por defesa, nos recusamos a identificá-la e a aceitá-la, estamos a cometer um atentado contra nós próprios” (M. Cordo, Direito à tristeza).
“Não faz mal não estar bem” significa que, de facto, temos direito a estar tristes e a falar disso, que é importante aceitar a vulnerabilidade e a indigência não apenas como fatores externos, mas como condição que nos constitui.
“Não faz mal não estar bem” significa que, de facto, temos direito a estar tristes e a falar disso, que é importante aceitar a vulnerabilidade e a indigência não apenas como fatores externos, mas como condição que nos constitui.
Em primeiro lugar é importante acolher os nossos próprios sentimentos e identificá-los, dar-lhes nomes, mesmo os mais difíceis. É importante não deixar que mandem eles na nossa vida. É importante não os acariciar como animais de estimação para nos vitimizarmos depois, diante dos outros, em proveito próprio. É importante não os deixarmos confinados num baú escondido sem a possibilidade de saírem. É importante pedir ajuda a um colo onde possamos largar essas cargas pesadas e aprender a falar do que sentimos com transparência, sendo quem somos, para não deixar que a tristeza se agarre a nós como um parasita que nos suga ou como um fato que a certa altura já não conseguimos despir. Os sentimentos são ‘seres’ que precisam de ser libertados para não se tornarem libertinos e insubordinados.
Em segundo lugar, é preciso criar no coração um campo sem minas, para acolher os outros na sua tristeza, na sua fragilidade, na sua necessidade. Quando vemos alguém triste salta logo o desejo de dizer palavras de consolo e dar conselhos. Queremos assegurar que vai ficar tudo bem, mesmo quando isso escapa das nossas mãos. Não será melhor aprendermos simplesmente a acolher o outro, com humildade, sem necessidade de dizer alguma coisa, sem aquela tentativa inútil de justificação apressada mais para nosso consolo do que verdadeira ajuda? É certo que a tristeza dos outros também nos deixa inseguros, nos faz lembrar as nossas próprias inquietações, e traz à superfície os nossos medos. Mas é essencial que o outro encontre em nós um espaço de acolhimento não defensivo e aberto onde se possa dizer e partilhar. E isto sem ficarmos à espera de que esteja em nós tudo resolvido para então depois atendermos aos outros. No cruzamento e na partilha das fragilidades acontece redenção.
Em terceiro lugar é essencial aceitar que a vulnerabilidade faz parte de nós. Desde o choro do recém-nascido ao gemido de quem morre, passando pela incerteza e pela impossibilidade de dominar todas as coordenadas da vida, a necessidade está inscrita no nosso ser. Somos desde o princípio vulneráveis, indigentes, não bastantes a nós próprios.
É essencial aceitar que a vulnerabilidade faz parte de nós.
A história da salvação está cheia de exemplos de vulnerabilidade. A solidão original, a nudez de Adão e Eva, a impotência do inocente Abel, os órfãos e a viúvas e os estrangeiros a quem Deus ama, os coxos, os cegos, os paralíticos, os possessos que Jesus cura. Os frágeis, os vulneráveis, os imperfeitos são lugares privilegiados do amor de Deus e da sua misericórdia.
E se tomarmos a vida e a Páscoa de Jesus como modelo de todas as vidas percebemos que a vulnerabilidade não é apenas uma coordenada antropológica, mas um lugar teológico. Jesus nasce na fragilidade da carne e em situação precária, comove-se e chora pelos amigos, sente tristeza e angústia, é condenado à morte, sente o abandono, morre quase sozinho, ressuscita na solidão do sepulcro, sem grande espetacularidade e um dos sinais disso é o vazio. Deus nasce vulnerável e morre vulnerável (Cf. Jean VANIER, Jesus vulnerável). A vulnerabilidade não é um obstáculo, mas o caminho que com amor, precisamos de percorrer.
Neste tempo de pandemia fomos inundados pela expressão “Vamos todos ficar bem”! É uma expressão que procura legitimamente trazer confiança à distopia que vivemos, mas pouco real e utópica. Juntamente com um mar de oportunidades de bem e mudança, de criatividade, de superação e generosidade, foram-nos reveladas também desigualdades, falhas dos sistemas, egoísmos internacionais. Há pessoas doentes, pessoas a morrer, pessoas que perdem pessoas, pessoas sozinhas, pessoas cansadas, pessoas com fome, pessoas em guerra, pessoas em fuga pela sobrevivência. Não está tudo bem!
E mesmo quando este vírus que nos atormenta for vencido, como esperamos, nem tudo irá, automaticamente, ficar bem. Os problemas por resolver continuarão a existir, não só na nossa vida pessoal, mas na cena internacional, em proporções e consequências de ordem social e económica que começamos a antever e nos provocam incertezas. Não vai ficar logo tudo bem!
Aceitar, sem resignação, com serenidade e esperança, que nem tudo está bem, e que “não faz mal não estar bem” é condição de possibilidade para acreditarmos que, em conjunto, e com a força de Deus, podemos tornar tudo melhor.
Quanto à música da Mimi… é ver e ouvir… por favor…
[©P. Nuno Amador | PontoSJ]