O que é um amigo?
No outro dia tocaram-me à campainha, a um domingo de manhã, sem aviso prévio. Era uma amiga, que me trazia “o pequeno-almoço porque se lembrara de que eu podia gostar”. Quase não entrou em casa, deu-me os sacos, encheu-me a mesa de pão e bolos e salgados e o coração de amor.
Alguns dias antes, durante o Grande Confinamento, uma outra amiga entrou-me pela casa adentro via teleconferência para me dar uma aula de yoga. Corrigiu-me as posturas, animou-me durante a prática, sofreu com o que consegui e com o que não consegui fazer, à distância de um computador. E encheu-me o coração de amor.
Uma outra acolheu-me a tristeza, no sábado santo, ciente de que ter a casa vazia dos meus pais era para mim um sofrimento que estava a ser difícil processar no tempo pascal. A minha amiga agnóstica limpou-me [à distância] as lágrimas, e abraçou-me calorosamente com as suas palavras e o seu sorriso. Enquanto encheu o meu coração de amor.
Um amigo querido telefonou-me, no outro dia, e em três frases fez-me chorar todas as lágrimas que achava que já não tinha, por dizer apenas palavras queridas, de quem sabe fazer-se presente mesmo que os anos e a vida tenham teimado em interpor-se diante de nós. E encheu-me o coração de amor.
Um outro partilhou comigo, durante longos telefonemas ao longo dos últimos meses, problemas sérios que está a encontrar no seu caminho, reflexões profundas sobre os cruzamentos da vida, pedindo apenas um ouvido e um colo virtual que a Covid e os milhares de quilómetros que nos separam não permitem tornar diferente. E amor.
“Um amigo, por definição, é alguém que caminha a nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por dezenas de anos”, escreveu D. José Tolentino Mendonça no seu livro ‘Nenhum caminho será longo – Para uma teologia da amizade.’
Cada vez mais acredito que, entre amigos, mais do que as palavras, faz também falta o silêncio: o silêncio que nos deixa ouvir, que nos dá tempo para refletir, que deixa o outro ser.
Temos, muitas vezes, a tendência de confundir este caminhar lado a lado com concordância total com o outro. Sobretudo quando ainda não temos a certeza de quem somos ou daquilo em que realmente acreditamos, os amigos tornam-se pontos de referência, exemplos a seguir, guias num percurso que às vezes nem sentimos estar ainda a definir.
Às vezes esses mesmos amigos tornam-se também motivo de confusão, de angústia, de incerteza, com a vontade que têm que sejamos como eles – e nós com a nossa vontade de que eles sejam em tudo iguais a nós.
Cada vez mais acredito que, entre amigos, mais do que as palavras, faz também falta o silêncio: o silêncio que nos deixa ouvir, que nos dá tempo para refletir, que deixa o outro ser.
“A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio”, escreve Miguel Sousa Tavares no livro ‘No teu deserto’. O silêncio que não julga, mas acolhe. O silêncio que dá espaço ao outro para se mostrar, e a nós para perceber que não somos iguais. O silêncio que nos permite entender e responder em conformidade. O silêncio que diz tanto, não deixando ressoar eco algum.
Os amigos que crescem connosco – não apenas na medida do tempo que passa – são os que nos aceitam como somos, nos espicaçam para que nos tornemos pessoas melhores, nos apontam os erros e nos ajudam a olhar para aquilo em que nos tornámos com a generosidade e o amor que às vezes não conseguimos ter para connosco. Os amigos salvam-nos (tenho a certeza!) e são, eventualmente, o nosso porto mais seguro – ou não tivesse Jesus Cristo chamado sempre amigos aos 12 apóstolos que caminharam consigo.
E não nos angustiemos: mesmo aqueles a quem hoje não chamamos de amigos, por algum motivo, têm a sua quota parte de responsabilidade naquilo que somos. Porque toda a gente passa na nossa vida com um propósito – mesmo as que não permanecem para sempre.
[Nos escuteiros, aprendemos desde cedo muitas músicas que nos ensinam a importância da amizade. E talvez não haja, realmente, algo melhor que a simplicidade para tentar explicar algo tão complexo]