A 2.ª milha

Razões para Acreditar 27 novembro 2020  •  Tempo de Leitura: 13

Se quiséssemos falar de Jesus a uma pessoa que não O conhecesse e só pudéssemos citar três frases Suas, que frases escolheríamos? Alguém, no outro dia, me deixou surpreendido ao escolher a seguinte frase:

 

Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas“. (Mt 5, 41)

 

A pessoa defendeu que este princípio da 2.ª milha era essencial para se entender o que é ser-se cristão. Até mesmo na área profissional. Esta conversa tem-me dado que pensar.

 

Qual é o sentido da frase?

Parece que, no tempo do Império Romano, oficiais do governo podiam obrigar qualquer pessoa a carregar um fardo por uma milha (quilómetro e meio, mais ou menos). Hoje é fácil contratar uma transportadora (se tivermos dinheiro) mas no tempo de Jesus e do Império Romano não seria assim tão fácil. Talvez fosse esta a situação que Jesus tinha em mente. Alguém com autoridade e cheio de malas podia dizer-nos “Requisito-te para vires comigo e me ajudares a carregar estas malas até à próxima aldeia”. Como reagimos?

 

A reação mais natural seria dizermos “vai pedir à tua tia!” ou inventarmos uma mentirazinha para nos esquivarmos ou então pegarmos nas malas com cara resignada sussurrando entre dentes que “manda quem pode”. A proposta de Jesus é que nos ofereçamos para carregar as malas não só até essa aldeia mas até à outra que fica a duas milhas de distância.

 

Jesus está a falar de relações humanas. Antes (Mt 5, 38) tinha referido a “Lei de talião” (“Olho por olho e dente por dente“). Esta lei, aparentemente brutal, teve um papel importante na delimitação da retribuição da ofensa. Se tirarem um olho a alguém da minha família eu posso tirar um olho a essa pessoa ou a alguém da sua família, mas não posso tirar dois olhos… Jesus, porém, convida a ir muito mais longe do que a mera retribuição expressa na Lei de Talião: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser lutar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa.” (Mt 5, 39-40)

 

Não creio que estas afirmações sejam um convite à submissão (fazermos o que os outros querem que nós façamos) mas ao amor. Ou seja: Jesus propõe que busquemos, em qualquer circunstância, o bem dos outros. Até mesmo dos que nos fizeram mal (os “inimigos”).

 

Não creio que estas afirmações sejam um convite à submissão (fazermos o que os outros querem que nós façamos) mas ao amor. Ou seja: Jesus propõe que busquemos, em qualquer circunstância, o bem dos outros. Até mesmo dos que nos fizeram mal (os “inimigos”).

 

Esta proposta de Jesus aponta-nos um caminho novo. Porque normalmente relacionamo-nos por reação: se alguém é simpático connosco, nós também somos simpáticos, mas se alguém é repetidamente desagradável então aí “já vais ver…” Para Jesus, a lógica da retribuição não chega:

 

“Se fazeis bem aos que vos fazem bem, que agradecimento mereceis? Também os pecadores fazem o mesmo.” (Lc 6, 33)

 

Duas maneiras de estar na vida

 

Em geral, na vida, caminhar a 2.ª milha é ser capaz de gratuidade e de dar um passo para além daquilo que é o estritamente necessário, daquilo que é a nossa obrigação. Caminhar a 2ª milha não é necessariamente fazer mais ou fazer o que for mais difícil fazer. Caminhar a 2.ª milha é uma atitude, um modo de fazer, que se reflete na entrega que pomos em tudo o que fazemos.

 

A pessoa que me alertou para a importância desta frase de Jesus falava muito da diferença que a “2.ª milha” faz na vida profissional. Creio que se referia ao “brio profissional”, à busca da excelência. Não significa necessariamente trabalhar mais horas mas dar de si para que as coisas saiam melhores, para além do estritamente necessário. Não para se ganhar mais nem para que o chefe repare e nos promova mas simplesmente porque se apostou em fazer as coisas bem feitas. É o oposto do “jogar pelos mínimos”.

 

Creio que – em geral – todos temos alguma preocupação em “não falhar”. Alguns têm essa preocupação em relação aos olhares exteriores (não falhar perante o patrão, os colegas ou o próprio Deus) enquanto que outros têm essa preocupação diante de si mesmos (não falhar diante da sua própria consciência). Facilmente, no entanto, esta preocupação em cumprir sem falhar remete para os mínimos. Se não baixar abaixo dos mínimos não falho. Muitas pessoas na sociedade são assim, jogam pelos mínimos. Entram e saem dos empregos às horas certas, cumprem com as suas obrigações matrimoniais, pagam impostos e ficam contentes por não estar a dever nada a ninguém e ninguém (nem sequer a sua consciência) os poder acusar de não estarem a fazer o que deviam.

 

Quando se está na 1.ª milha, por vezes a tentação aperta e desce-se momentaneamente abaixo dos mínimos. É difícil nunca haver um momento em que se saiu do trabalho um pouco antes quando ninguém estava a ver ou fingir que se estava a olhar para a mulher estando a olhar para a rapariga por detrás dela na esplanada ou dizer aquela mentira ao polícia para tentar escapar da multa. Aí vêm as frases típicas da 1.ª milha: “qual é o mal?”, “não matei ninguém”, “todos somos humanos” ou, para os mais honestos: “eu também não sou parvo”. Podemos entrar neste processo de auto-justificação ou então arrepender-nos (e até eventualmente confessar-nos) mas se não ambicionarmos a 2.ª milha não saímos de um círculo vicioso que não nos deixa avançar.

 

Não significa necessariamente trabalhar mais horas mas dar de si para que as coisas saiam melhores, para além do estritamente necessário. Não para se ganhar mais nem para que o chefe repare e nos promova mas simplesmente porque se apostou em fazer as coisas bem feitas. É o oposto do “jogar pelos mínimos”

 

Resumindo: caminhar na 1.ª milha é fazer o que os outros pedem ou exigem ou o que eu sei que devo fazer. E, se o fizer, isso é ótimo! Mas caminhar a 2.ª milha é ir para além disso: é dar o melhor de mim. O olhar na 1.ª milha está posto nas obrigações; o olhar na 2.ª milha está posto no bem.

 

Duas maneiras de ser cristão

 

Há duas maneiras de se ser cristão. Os cristãos da 1.ª milha procuram cumprir. Preocupam-se que ninguém nem a sua consciência os possa acusar de nada. Têm uma grande noção das suas obrigações e, por isso, gostam de regras claras.

 

Era esta a situação do “Jovem Rico” (Mt 19, 16-22) a quem Jesus começou por dizer para cumprir os 10 mandamentos (“Não mates, não cometas adultério, não roubes…”). Ou seja: Jesus propôs-lhe que caminhasse a 1.ª milha. Mas quando o rapaz confessou que já fazia isso, então Jesus, “olhando para ele com afeição”, propôs-lhe que começasse a caminhar 2.ª milha:

 

 “Vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.” (v. 21)

 

Creio que a 1.ª milha bem percorrida é suficiente para a salvação, já que significa cumprir os 10 mandamentos. No entanto a verdade é que não encontramos nenhum santo que não ambicionasse a 2.ª milha.

 

Santo Inácio de Loyola falou e escreveu sobre isto muitas vezes. A ideia ficou consagrada nesta pequenina palavra latina: “MAGIS”. Ou seja: “mais”. É um princípio que Santo Inácio apresenta logo no início dos seus Exercícios Espirituais, num texto chamado “Princípio e Fundamento”:

 

“Devemos somente desejar e escolher o que MAIS nos conduz à finalidade para que somos criados” (EE, 23)

 

Ou seja: para se ser cristão não basta tentar ser um bom cidadão e cumprir com todas as obrigações religiosas de modo a evitar qualquer pecado mortal. Para se ser cristão é preciso desejar ir mais longe e estar disposto a pagar o preço desse “mais”.

 

Tal como o Jovem rico, também nós, por vezes, sentimos o dilema da entrada na 2.ª milha. Há uma voz dentro de nós que por vezes fala e diz que gostava de ir mais longe. Essa voz fala quando temos uma boa experiência de oração, quando lemos a vida de um santo, quando conversamos com alguém excecional. Mas logo uma outra voz dentro de nós responde: “calma aí, não é preciso exagerar! Tu até já nem és má pessoa. Não matas ninguém…”

 

Sabemos como terminou a história do jovem: “Retirou-se triste” (v. 21)

 

A 1.ª milha é muito importante, permite que as coisas funcionem. Mas é a 2ª milha que lhes dá brilho e sabor.

 

Felicidade a sério só na 2.ª milha

A 1.ª milha é muito importante, permite que as coisas funcionem. Mas é a 2.ª milha que lhes dá brilho e sabor.

 

É na 2.ª milha que a vida começa a ter mais cor. É aí que surge a liberdade interior e a criatividade. E é também nesta parte do percurso que conhecemos as pessoas mais interessantes, aquelas que não se movem por agradar aos outros ou simplesmente por cumprir as obrigações mas por ir ainda mais longe, depois de cumpridas todas as obrigações.

 

Entre as pessoas interessantes que podemos encontrar na 2.ª milha, a mais interessante é Jesus, o homem livre que nos aponta sempre saídas inesperadas e criativas para as situações da vida. Creio que é só na 2.ª milha que podemos começar a conhecer Jesus na intimidade.

 

Resta-nos desejar “MAIS” e pôr-nos no caminho da 2.ª milha. Boa caminhada de Advento!

 

[P. Nuno Tovar de Lemos, sj]

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