O que eu penso sobre Fátima (2)
1 - Um problema maior deste tempo são a pressa, a imediatidade, a fragmentação. Alguém pára para pensar, para verdadeiramente se informar, reflectir? Alguém lê livros? Sim, livros? Porque um livro, quando é bom, dá que pensar, e tem princípio e meio e fim e aberturas para lá dele e é preciso dialogar com ele e os seus pressupostos e os seus horizontes. Mesmo num jornal, lê-se a notícia toda ou só o título? Afinal, um dos grandes perigos de hoje é que se vive de flashes, de impressões, na vertigem de um tsunami de informações e opiniões dispersas, intoxicantes.
No passado dia 14 de Abril, o jornal Expresso titulava na primeira página: "É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima" (Anselmo Borges). E remetia para uma entrevista na página 22. É claro que quem só leu este título ficou enganado. É verdade que eu disse aquilo. Mas quem foi ler a entrevista? Quem leu encontrou o que é fundamental: a necessária distinção entre "aparição" e "visão": "Posso ser um bom católico e não acreditar em Fátima porque não é dogma. Não me repugna, contudo, que as crianças, os chamados três pastorinhos, tenham tido uma experiência religiosa, mas à maneira de crianças e dentro dos esquemas religiosos da altura. É preciso também distinguir aparições de visões. É evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima. Uma aparição é algo objectivo. Uma experiência religiosa interior é outra realidade, é uma visão, o que não significa necessariamente um delírio, mas é subjectivo. É preciso fazer esta distinção."
Como já aqui expliquei, é evidente que Maria não apareceu fisicamente em Fátima, pois o crente na vida plena e eterna em Deus sabe que essa vida é uma nova criação, para lá do espaço e do tempo; não é segundo o modo da vida neste mundo. Mesmo a ressurreição de Jesus não é a reanimação do cadáver, é evidente, e, por isso, está para lá das manifestações físico-empíricas. Eu acredito na vida eterna e que Jesus está vivo em Deus. Como é? Ninguém sabe. As grandes experiências, as que decidem da vida e da morte e do sentido da existência e da história, são interiores. É neste dinamismo que estão as experiências da fé religiosa, mesmo se - a experiência nunca é pura, nua - se dão no quadro de esquemas, figuras e imagens interpretativos, segundo as situações, os tempos e os contextos. O referente - pólo objectivo - é sempre o mesmo: o Mistério, o Sagrado, Deus, Presença transcendente-imanente, que o crente - pólo subjectivo - experiencia como Fundamento e Fonte de salvação.
Percebe-se então que há experiências religiosas melhores e outras menos boas. E lá está na entrevista: "E por isso digo que é necessário evangelizar Fátima, ou seja, trazer uma notícia boa. Porque mesmo para aquelas crianças aquela não foi uma notícia boa: que mãe mostraria o inferno a uma criança?"
2 - Qual é o núcleo da mensagem de Fátima? Em primeiro lugar, a oração. É uma grande mensagem? É. Para crentes e não crentes. Quem não precisa de rezar? Não necessariamente dizendo orações, embora os cristãos tenham a oração essencial que Jesus ensinou: o pai-nosso", onde está o núcleo da vida: a ligação à Transcendência, que é Amor; que o Reino de Deus venha: o Reino da verdade, da justiça, da dignidade livre e da liberdade na dignidade para todos e que lutemos por isso; a gratidão face ao milagre exaltante da Vida; o pão para todos; o milagre do perdão; a atenção ao essencial da vida, para se não cair na tentação da desgraça, do mal que fazemos a próprios e aos outros. A oração implica parar para escutar o silêncio e o que só no silêncio se pode ouvir: a voz da consciência e da dignidade, meditar, descer ao mais fundo de si, lá onde se encontra a ligação com a Fonte, donde tudo vem e onde tudo se religa e se faz a experiência do transtempo, para se poder viver no tempo sem se afundar na dispersão e no vazio.
A outra mensagem: "Fazei sacrifício e penitência." E aquelas crianças até a pouca comida que tinham davam às ovelhas pela conversão dos pecadores.
Fátima precisa de ser evangelizada. Evangelho quer dizer notícia boa e felicitante, mas, frequentemente, como bem viu Nietzsche, o que se anunciou foi um Disangelho: uma notícia desgraçada e que arrastou consigo imensa infelicidade. No Evangelho segundo São Marcos, Jesus inicia a sua vida pública, proclamando: "Metanoiete", cuja tradução normalmente é: "Fazei penitência", mas realmente o que lá está é: mudai de mentalidade, de modo de pensar; portanto, mudai de vida, de mentalidade, de atitude, e acreditai no Evangelho. Jesus anunciava: "Ide aprender o que isto quer dizer: Deus não quer sacrifícios, mas justiça e misericórdia." O que Jesus declarava era uma boa-nova: Deus é Amor, Fonte de vida, Liberdade criadora, que quer a vossa felicidade. "Não tenhais medo", é outra palavra constante de Jesus. Mas, realmente, o que se pregou muitas vezes foi um deus da tristeza, do medo, do terror, chegando-se ao limite de pregar que Deus precisou da morte do próprio Filho para se reconciliar com a humanidade. Foi deste deus que Nietzsche proclamou a morte, porque perante um deus assim só se pode desejar que morra.
É completamente diferente o que está no Evangelho. Jesus não foi morto para aplacar a ira de Deus, Ele entregou-se à morte e morte de cruz para dar testemunho da Verdade e do Amor: o único interesse de Deus é que os homens e as mulheres, todos, sejam plenamente realizados e felizes. Esse é o sentido do sacrifício: não o sacrifício pelo sacrifício, mas o sacrifício que traz vida. O sacrifício pelo sacrifício não vale nada, mas, por outro lado, sem sacrifício, nada de grande, de verdadeiramente valioso, se realiza. "Mudai de mentalidade": batei-vos pela vida, pela justiça, pela paz, pela felicidade, pelos direitos e pela dignidade divina de cada homem e de cada mulher, de todos. Sacrificai-vos por isso. É o que Deus quer e o que vale a pena. Para sempre.