AS TENTAÇÕES DE JESUS
As tentações que os evangelhos nos contam que Jesus enfrentou, e que os cristãos recordam especialmente neste tempo de Quaresma, certamente não aconteceram apenas numa jornada só. Creio que podemos imaginar, sem muitas fantasias, as vozes contrastadas que ele terá ouvido ao longo da sua vida, as pressões que sentiu, o conflito interior, as encruzilhadas dilemáticas, o insustentável peso das expectativas de quem o queria para rei, para curandeiro, para tapa-buracos à mão de manobrar, para Messias fácil, etc. As três grandes formulações que surgem no relato das tentações resumem o que Jesus foi sofrendo, e ao mesmo tempo sinalizam aquelas turbulências fundamentais que são comuns à condição humana.
Na primeira delas, “o tentador aproximou-se e disse-lhe: ‘Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pão.’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’.” À primeira vista não podemos estar mais de acordo com Jesus. “Nem só de pão vive o homem”. Isso é uma evidência partilhada. Podemos percorrer a história do pensamento e da cultura e não encontraremos ninguém que o tenha negado. Mesmo os mais pessimistas sobre o significado do homem, ou até os mais materialistas. Ninguém considera que o pão só por si baste. Mas o problema que Jesus coloca não é apenas que o pão ou a materialidade da vida no seu conjunto sejam insuficientes. A palavra de Jesus leva-nos mais longe, porquanto nos obriga a confrontarmo-nos com aquilo que nos faz viver. Não vivemos só de pão: vivemos então de quê? Desta maneira, Jesus relança a questão de fundo do ser humano, que não se reduz nem se explica somente pela luta pela sobrevivência. O ser humano é mais. A vida é chamada a ser mais.
Na segunda tentação, “o diabo conduziu-o à cidade santa e, colocando-o sobre o pináculo do templo, disse-lhe: ‘Se Tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Dará a teu respeito ordens aos seus anjos; eles suster-te-ão nas suas mãos para que os teus pés não se firam nalguma pedra.’ Disse-lhe Jesus: ‘Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus!’”. No seu livro, “Jesus de Nazareth”, Bento XVI escreveu que o significado desta tentação é o mais difícil de compreender. É que Jesus é tentado com a própria palavra de Deus e com o seu conteúdo último. Mas o verdadeiro sentido desta tentação é, de novo, esclarecido pela reação de Jesus, citando o passo de Deuteronómio, “não tentarás o Senhor teu Deus” (Dt 6,16). Deus não tem de se submeter às condições que consideramos necessárias para podermos acreditar nele. Deus não tem de se revelar num providencialismo de tipo mágico para que a nossa fé não vacile. Jesus mostra-nos mesmo que Deus se escuta e toca no silêncio de Deus. De facto, ele não se atira do pináculo do templo, mas atira-se do cimo da cruz naquela prece em forma de grito: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mc 15,34).
A terceira tentação é a etapa culminante do relato. “Em seguida, o Diabo conduziu-o a um monte muito alto e, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória, disse-lhe: ‘Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Vai-te, Satanás, pois está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto’.” O culto do poder faz do poder um ídolo, qualquer que ele seja. Torna o domínio a suposta fonte de felicidade e de sentido, reduzindo a isso o horizonte de significação da vida. Não devemos esquecer que Jesus recusou determinantemente ajoelhar-se perante Satanás, mas ajoelhou-se voluntariamente diante dos discípulos e para lavar-lhes os pés (Jo 13,4-5).
[©Revista Expresso | 2365, 24 de fereveiro de 2018]