Morrer é não ser visto, por Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos
Nós começámos este mês de novembro, ontem, pela celebração de Todos os Santos e, hoje, pela celebração dos Fiéis Defuntos. No fundo, somos chamados a um confronto com a morte, que é um confronto que a nossa cultura evita a todo o custo. A morte tornou-se um tabu, uma ocultação. Todos nós vivemos, socialmente e culturalmente, como se a morte não existisse. A morte é retirada da cena pública. Infelizmente, até o dia 1 de novembro deixou de ser feriado entre nós. Menos possibilidade, como sociedade, nós temos de mergulhar mais fundo, no significado, não da morte, mas da vida. Porque pensar o que é a morte é pensar também o que é a vida. De facto, há uma certa infantilização da nossa cultura, no sentido de que a morte deixa de ser um fator na construção e na imaginação das nossas próprias vidas. A sabedoria bíblica dizia precisamente o contrário, dizia: “Homem pensa na tua morte. Homem pensa que vais morrer. Aprende a contar os teus dias. Sabe que todos os teus dias já estão contados. Porque só assim podes orientar o teu coração na sabedoria.” Isto é, a morte não é um ladrão que há de roubar a nossa vida. A morte, como dizia S. Francisco, “é uma irmã que está connosco desde o berço.”, que nos acompanha todo o tempo, e com a qual nós temos de criar uma relação diferente desta surpresa, desta coisa inesperada em que a morte se tornou nas sociedades modernas. É uma coisa que nenhum de nós espera. É uma condição da nossa própria vida. Por isso há aqui uma relação a trabalhar, a relação de cada um de nós com a própria ideia de morte. O que não quer dizer que a ideia de morte será, alguma vez, perfeitamente pacífica para nós.
E, até, mais difícil de encarar do que a nossa morte pessoal é a morte daqueles que amamos. Que é, porventura, o desafio mais terrível, mais inusitado, que todos nós temos de enfrentar. Já na tradição cristã, por exemplo, dois grandes padres da Igreja, Gregório de Nazianzo e Basílio, que eram muito amigos, quando morreu Basílio, no funeral, Gregório de Nazianzo fez uma homilia célebre em que dizia: “Se me viessem dizer que um corpo podia viver sem a sua alma eu acreditava. Mas se me viessem dizer que eu podia viver sem ti, isso para mim parecia-me impossível.” E é impossível. Nós não conseguimos viver sem os outros, sem aqueles que amamos, estejam neste mundo a nosso lado ou estejam do outro lado junto de Deus. Eles continuam a viver connosco, continua a haver uma comunhão dos santos, não há um dia em que não pensemos neles. A presença deles, a memória deles, é uma coisa sagrada que nos acompanha. Lá vamos buscar a força, vamos buscar o entendimento de nós mesmos, vamos buscar a palavra que eles nos disseram, sentimo-nos herdeiros deles, herdeiros da vida que eles viveram, do sonho que os habitou, do coração que neles bateu tão forte e tão ténue, somos herdeiros deles até ao fim. Embora, de facto, nos sintamos de mãos vazias para falar destas coisas, porque sentimos que temos de fazer o luto, que é no luto que tateamos os seus rostos amados, que é na ausência, que é no silêncio, nós não vemos, deixamos de ver. Fernando Pessoa dizia que “morrer é não ser visto. Morrer é passar a curva da estrada.” E, de certa forma, é isto que nos acontece, e primeiro acontece àqueles que amamos, e cada um de nós é testemunha da vida uns dos outros e do mistério desta vida que ultrapassa as nossas palavras e as nossas explicações. Mas acreditamos que há uma forma de comunhão. E essa comunhão, para nós, é uma coisa ao mesmo tempo intangível mas absolutamente presente.
Um grande filósofo marxista Ernst Bloch escreveu, em grande medida, um dos livros marcantes do século XX e que abriu o marxismo a um certo sentido de transcendência. O livro chamava-se O Princípio da Esperança e ele escreveu esse livro muito a partir do que ele próprio experimentou: a relação com a esposa, que era para ele uma relação absolutamente indivisível. Quando ela morreu, a experiência que ele fez foi: “não, ela não pode simplesmente ter desaparecido. Não pode.” Há uma persistência, que é doutro domínio, que é de outra ordem. É essa persistência que eu tenho agora de acolher e transformar numa forma de comunhão, numa forma de companhia, numa forma de presença.
S. Paulo, na Carta aos Coríntios, tem esta frase extraordinária: “ Não olhemos apenas para as coisas visíveis, olhemos para as coisas invisíveis.” Neste dia em que somos chamados a rezar, a tornar presentes, a fazer memória dos nossos queridos que já partiram, é isso que temos de fazer: olhar para as coisas invisíveis e dar-lhes o valor que elas devem ter nas nossas vidas, nas nossas histórias. Porque nem tudo cabe no nosso olhar, nem tudo cabe naquilo que ouvimos. Há tanta coisa que está para lá do que nós podemos medir. E isto não é apenas mística, isto é a ciência, é a realidade. Um cão ou um gato ouvem o dobro das coisas que nós ouvimos. Nós ouvimos metade das coisas que eles ouvem. O olhar de certos animais vê muito mais coisas do que aquelas que nós vemos. A estrutura do nosso ser, que é uma estrutura que nos dá a sensação do eterno, ela não deixa de ser limitada. Os nossos sentidos, dizendo-nos coisas tão fascinantes, não nos dizem tudo, abrem-nos ao mistério.
Queridos irmãs e irmãos abramo-nos também a esse mistério e sintamos que aquilo que S. Paulo escreveu aos Coríntios, naquele final de século primeiro, é absolutamente válido para nós. Nós sentimos, à medida que crescemos e que envelhecemos, que há uma espécie de destruição do nosso corpo, da nossa forma. Temos menos forças, menos capacidades. Mas, ao mesmo tempo, sentimos que isso não é o fim. Porquê? Como diz S. Paulo há: “o homem interior.” Que vai sendo reforçado dentro de nós. Há a mulher interior que vai nascendo. E a vida não é uma morte, a vida é um parto, a vida é um nascimento. As dores que sentimos são também as dores de parto, não são as dores do braço que não vai funcionar mais como já funcionou, não são as dores dos olhos que já não vão ver como um dia viram. Mas é a dor de um outro nascimento que tem de acontecer dentro de nós e que nós alimentamos na fé. Essa certeza de que há uma interioridade que se vai tornado cada vez mais decisiva, cada vez mais radical em nós, essa interioridade é uma semente, que há de florir, não já apenas no tempo mas também na eternidade, não apenas na história mas também junto de Deus.
É interessante nós olharmos, por exemplo, para um homem como Paulo, que é um homem que tenta explicar a Humanidade e a fé, procura as razões para a sua fé, e vermos que ele fica muito atrapalhado a falar da morte e a falar da vida eterna. Atrapalhado no sentido de que não encontra palavras e vai criando imagens diferentes, imagens novas. Porquê? Porque sente o limite das próprias imagens. Quer dizer, o que quer que a gente diga é insuficiente, fica aquém, mas no meio desta dificuldade, com a qual todos nos debatemos, há uma certeza que emerge no coração de Paulo. E é essa certeza que, mesmo ténue e frágil, emerge no coração de cada um de nós: nós estaremos com Ele para sempre, qualquer que seja a forma, e será sempre surpreendente para nós porque é a forma de Deus em nós, não é apenas uma construção nossa, é o dom de Deus.
Nós não ressuscitamos, nós somos ressuscitados, somos transformados por Deus. Mas temos de ver a vida como um processo de transformação em que estamos sempre com Ele. Esta confiança de que estamos com Ele é também a certeza da comunhão dos santos, a certeza de que estamos com todos os que estão Nele. No coração de Deus há lugar para todos e Deus é um pai de misericórdia que espera por todos. Deus não exclui ninguém, Deus espera por todos e quer salvar a todos. É esta a confiança que a fé nos dá, de que estaremos sempre com Ele, qualquer que seja a nossa forma, qualquer que seja o nosso modo, qualquer que seja o nosso tempo, é daí que nós partimos para esta confiança também no encontro uns com os outros, no reencontro com aqueles que amamos, nessa certeza de que nada se perde no coração de Deus e tudo se transforma.
É claro que as nossas lágrimas continuam a ser choradas e que a ausência daqueles que amamos continua a fazer-nos falta, continua a doer-nos, porque um pai é um pai, porque uma mãe é uma mãe, porque um esposo é um esposo, porque uma esposa é uma esposa, porque um amigo é um amigo. E continuamos, até ao fim, como testemunhas dessa ausência e isso provoca em nós uma dor que também é importante nós não mascararmos. É importante essa nudez, esse vazio, essa orfandade que também nos assinala até ao fim. Mas, nesta exposição da nossa dor, é importante a palavra de confiança que Paulo nos diz, nós não colocamos o nosso olhar apenas nas coisas visíveis, colocamos nas coisas invisíveis. Por isso, este discurso extraordinário que Jesus nos faz: “vinde a mim todos vós que andais enlutados e afadigados, porque Eu vos aliviarei. Eu serei reconforto para as vossas almas, porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.” A transformação do nosso peso, da dor agressiva que tantas vezes nos marca, transformar isso em leveza e em suavidade é uma coisa que, para nós cristãos, só acontece na medida em que colocamos a nossa história de vida nas mãos do próprio Deus.
[Capela do Rato]