A herança de meu pai, por Tolentino Mendonça
Quando se fala de heranças, deveria ser claro que as coisas materiais são o aspeto menos importante de uma transmissão que se for apenas dos direitos de propriedade disto ou daquilo verdadeiramente não se consuma. As heranças verdadeiras, aquelas que nos confirmam numa determinada filiação ou linhagem, têm por força que ser mais amplas, mais ambiciosas e, ao mesmo tempo, mais irredutivelmente pessoais do que a pura materialidade. Lembro-me de um verso de Ruy Cinatti: “Quem não me deu Amor, não me deu nada”. E ele escrevia Amor assim, com maiúscula, como que a sugerir que a única dádiva que conta é aquela que nos inicia, através de mil entradas possíveis, no conhecimento do amor como o nome maior entre todos os outros, como a experiência que nos ancora no absoluto. Penso, por isso, que precisamos de pensar na natureza dos tesouros que podemos efetivamente dar ou receber, e como eles estão afinal mais ao nosso alcance do que porventura julgamos (e também mais longe de certos cálculos tolos onde nos perdemos). Não há maior herança do que a da vida revelada no que ela tem de profundo e flagrante, de grácil e de arrebatador, de esperançoso e possível. Não há maior herança do que transmitir uma dessas centelhas, quaisquer que elas sejam, onde o infinito reluza. Tenha-se chegado a ele através de uma viagem ou do enraizamento, através de uma paixão ou de uma grande dor, através do júbilo ou da escassez, um fragmento de infinito é a única coisa sem preço que nos pode ligar para lá do espaço e do tempo. Palavras sábias são estas do testamento de Ryokan (1758–1831), o monge-poeta japonês: “O meu legado qual será?/ As flores do campo na primavera/ o canto do cuco no verão/ a dança das cores no outono”.
Estava há dias a conversar com um amigo de vinte anos que perdeu o pai no ano passado. E contava-me ele que viviam num dos bairros de Lisboa onde tradicionalmente se instalam redes de prostituição ao cair do dia. O pai trabalhava numa agência de viagens não distante de casa e ao regressar falava sempre às mulheres postadas na esquina do prédio, olhava-as com humanidade. Sabia o nome delas e o dos filhos, de que países vinham e por aí fora. Este meu amigo e os irmãos não ficaram, por isso, completamente surpreendidos quando os pais convidaram uma rapariga da rua, no dia dos anos dela, para vir jantar com eles, nem que ela passasse a estar presente nos Natais de família dos anos seguintes. Ela chegava com uma roupa normalíssima e, antes de sair, vestia-se para a noite na casa de banho deles. Ajudados pelo pai, não a julgavam. Eram apenas humanos.
Outra vez, o pai reparou num sem-abrigo carregado de maleitas que passou a frequentar o parque onde iam. Começou a meter conversa com ele, a criar relação. Vendo-o praticamente descalço perguntou-lhe que número calçava. O Natal era por esses dias e o pai levou este meu amigo a comprar umas botas para o sem-abrigo. Quando lhas foram entregar, este declarou, com veemência, que botas nunca, não conseguia andar com aquilo, era um desconforto. Foram imediatamente trocar por uns sapatos e tentar entregar-lhos ainda antes da festa. Mas já não viam o homem. Andaram mais de três horas à chuva, inspecionando os sítios prováveis e improváveis, e não o encontraram. Até que por fim, ao virar uma rua, como que do nada, deram de caras com o sem-abrigo. Ele calçou os sapatos cheio de uma alegria tão sincera que os fez abraçar e chorar a todos.
Como veem, às vezes duas histórias bastam para percebermos que estamos perante uma herança de verdade. O resto tem tão pouca importância.
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2273 | 21/05/16]