O GRITO DE JESUS
A narrativa do Evangelho segundo João, que a liturgia cristã retoma com intensidade por estes dias, conserva um apontamento que dá que pensar: já pregado na cruz onde haveria de morrer, Jesus declara “tenho sede!” (Jo 19,28). Os primeiros comentadores desta página evangélica interpretaram-na como o leitor a interpreta: como uma sede corporal. De facto, a sede sublinha o aspeto físico do sofrimento que foi infligido a Jesus, tornando-se um traço que atesta o realismo da sua morte. A sede física documenta de forma convincente a verdade que os cristãos professam no credo: que aquele Jesus de Nazaré era humano e de carne e osso, como qualquer um de nós. E a sede dá-nos uma narrativa. Relata-o pregado à cruz, esmagado pela dor, mortalmente exangue, imolado pela fadiga e os maus-tratos, a arder num grito como se ardesse em febre. Mesmo os padres da Igreja, que marcaram com a sua hermenêutica simbólica os primeiros oito séculos do cristianismo, não valorizaram um imediato sentido alegórico nesta declaração da sede de Jesus, interpretando-a sobretudo como essa sede corporal, compreensível no contexto da atrocidade que uma crucifixão significa. Talvez a única exceção seja a de santo Agostinho, que aponta, sem desenvolver muito, um sentido não apenas literal ao texto de João, no que será depois retomado por são Bernardo e pela exegese monástica medieval. A sede que rasgou Jesus até ao âmago, dirá são Bernardo, é mais dolorosa do que a própria morte: é o desejo ardente de salvar a humanidade inteira. Contudo podemos verificar, com maior ou menor surpresa, que serão sobretudo os autores contemporâneos a insistir no significado simbólico e espiritual da sede de Jesus e a defendê-la como chave de acesso vital para colher o significado profundo da sua morte. Cada época identifica-se com uma palavra ou procura uma gramática precisa que melhor a ilumine em profundidade. Que sejam os leitores de hoje a ancorar-se no tema da sede de Jesus também revela muito daquilo que interiormente nos habita.
Porque é que Jesus diz que tem sede? Porque a sede tem uma dimensão reveladora: ela permite-nos compreender o desejo que se aloja no interior do coração humano. A sede de Jesus não se materializa na água, porque não é de água a sua sede. É uma sede maior. É a sede de tocar as nossas sedes, de contactar com as nossas esperanças, os nossos desertos, as nossas feridas. É a sede que ele tem de tocar cada pessoa. A sede de Jesus ilumina a sede de bem, de verdade e de beleza, o desejo que subsiste em cada ser humano de ser salvo — mesmo se é um desejo oculto ou soterrado entre os nossos escombros existenciais. Dizer “tenho sede” significa reconhecer que se está incompleto; que falta alguém, alguma coisa; que o desejo ardente de vida deverá pulsar ainda, pois não está totalmente resolvido. Com razão Blaise Pascal escreveu que “Jesus está em agonia até o fim do mundo”. Isso mesmo que, por outras palavras, a romancista Clarice Lispector também recorda: “A condição humana é a paixão de Cristo.” Porque Clarice sabia bem que a sede de Jesus representa o “suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos”.
Por fim, a sede de Jesus é também sede de entregar o Espírito, de o transmitir, de o comunicar a outros. Por isso, quando a lança do soldado lhe rasgar o lado, juntamente com o sangue há de sair água. De um corpo sedento pode a água brotar — devemos interrogar-nos. Jesus atesta que sim: só um corpo sedento contagia outros com o dom revitalizador do Espírito, verdadeira água viva capaz de transformar toda a secura. Esta também é a sua lição.