O que o fogo não levou
As placas que vão indicando a localidade de Castanheira de Pera não deixam prever o cenário que estamos prestes a encontrar. À medida que nos aproximamos, tudo muda. As árvores que um dia deram vida às imediações da serra não existem. No lugar das centenas de troncos estão, agora, uns espetos pretos que parecem querer picar o azul do Céu. Do lado direito da janela do carro tudo preto, castanho, seco, triste. Do lado esquerdo, o cenário repete-se. A área ardida não cabe dentro dos nossos olhos, ainda que os levemos abertos de espanto e de incredulidade. Na estrada nacional 236 ainda estão carros e restos de camiões ardidos. Ali. Como se quisessem obrigar as pessoas a lembrar-se do que só querem esquecer. A viagem faz-se em silêncio. Uma quietude que nos confronta com uma tragédia que ainda pertence ao dia de hoje.
Em Castanheira de Pera encontramos pessoas simples e humildes que decidem receber-nos como se estivéssemos a chegar a casa. Há sempre lugar para mais um. Ou dois. São pessoas marcadas pela dor, pelas feridas que ninguém lhes vê, pelas saudades dos que já não voltam. São as pessoas que, agora, já não aparecem na televisão nem nas notícias, mas que nunca deixaram de estar onde sempre estiveram. São pessoas que perderam os seus quintais, as suas hortas, os seus animais, a sua forma de subsistir e, pior ainda, são pessoas que perderam filhos, filhas, sobrinhos, tios, padrinhos, madrinhas, irmãos, irmãs, pais, mães, amigos, vizinhos, gente da terra. São pessoas que perderam muito. Que ficam alerta quando a trovoada se aproxima, não vá um raio cair como naquele diae permitir que tudo se repita. São pessoas que, um ano depois, ainda não têm as suas coisas. Ainda não recuperaram. Ainda não reaprenderam a sonhar e a fazer planos. Ainda não sabem nada sobre o dia de amanhã. Não se fala do fogo ao pé das pessoas. É assunto a evitar porque, de algum modo, não deixa de pairar e de trazer as memórias que nem o tempo apaga.
Ainda assim, sobra-lhes a esperança que a gente nova lhes traz e quer trazer. Sobra-lhes a esperança dos que ficaram para cuidar deles quando os outros já debandaram. É essa esperança que se senta à mesa com eles e que não os deixa sozinhos. É essa esperança que ilumina os cerca de três mil habitantes da vila de Castanheira. É essa esperança que ajuda a fazer o luto. É essa esperança que lhes varre a tristeza dos olhos. Esses olhos que viram mais do que alguma vez poderão explicar.