Sai da frente, quero passar!
Não devem ser poucas as vezes que esta frase nos rebenta dentro da cabeça. Sai daí. Desvia-te. Quero passar. Agora sou eu. Agora não te quero ouvir. Agora falo eu. Sai. Não digas nada. Deixa-me estar e não te mexas sequer. Ainda estás aí parado? Sai. Não fiques a olhar para mim. Já te pedi que saias. Desaparece. Quero estar sozinho. Sai da frente, quero passar.
Somos reféns de não saber o que queremos realmente. Hoje sim. Amanhã não. Hoje companhia. Amanhã não quero ver ninguém. Hoje sou capaz de tudo e amanhã já me rendi ao que o mundo quiser que eu seja. Somos difíceis de compreender. Até para nós. Especial e principalmente para nós. Queremos, muitas vezes, passar à frente. Chegar primeiro. Desviar os que nos atrapalham e parecem não nos deixar chegar onde queremos. Mas que pessoa serei eu quando repito, dentro do meu coração, as frases do primeiro parágrafo? Que pessoa serei eu quando estou zangado a ponto de não querer ninguém por perto? Que pessoa serei eu quando desejo, ardentemente, que o outro me saia da frente e passe de uma vez?
Talvez não seja uma pessoa horrível. Posso ser só uma pessoa a viver a uma velocidade assustadoramente rápida. Quando começo a entender os outros como obstáculos, alguma coisa não está a correr bem. Ou talvez esteja tudo a correr bastante mal. Consideremos o seguinte: se me atrever a olhar para as pessoas como dificuldades que devo ultrapassar, rapidamente as transformarei em “coisas”, em pedaços turvos sem um rosto definido. É esse o perigo. É isso que se passa connosco no trânsito e, depois, na vida. Os condutores (grupo no qual me incluo) parecem esquecer-se que os carros são conduzidos. Que os protagonistas das asneiras somos nós. Somos aqueles que tiveram um dia mau, que perderam alguém que amavam, que estão a resolver um problema que parece não ter solução, que estão a pensar em mil coisas ao mesmo tempo. Quando nos enfurecemos com as trotinetes, as bicicletas, os carros ou as motas é quase como se lhes retirássemos os que os conduzem ou os que os/as levam. Transformamos as pessoas em obstáculos para fazer delas um alvo para a nossa fúria. Alguém me sabe dizer onde é que isso é justo? Em lado algum. Mas é humano, ainda assim.
Com a vida de todos os dias, é o mesmo. Mas a dimensão aprofunda-se ligeiramente. Quando entendo o outro como um obstáculo, não me importo de o prejudicar. Não me importo de lhe mentir ou de lhe ocultar o melhor que tenho para dar. Sai da frente, quero passar. É a frase que está errada. Que tal substituir essa por:
Chega aqui. Quero falar contigo.
Dizem que as pessoas conseguem entender tudo, quando falam. Mesmo quando não falam a mesma língua ou não acreditam nas mesmas coisas.