Pretexto
Antigamente sentíamos um misto entre o conforto e o desconforto natural ao passear pela rua de cada vez que nos cruzássemos com uma pessoa. Ter de confrontar o olhar do outro que desconheço é encetar num caminho de relacionalidade natural que nos é próprio. Mas, com o alvor da era digital encontrámos o Pretexto perfeito para deixar de sentir a incerteza do encontro com o outro. Salvos pelo ecrã.
Andamos, literalmente, cabisbaixos porque o manancial de conteúdos que nos são oferecidos ao preço da chuva salva-nos do confronto gerado pelos olhares das pessoas à nossa volta. Mantém-nos salvos na concha do “eu” que não quer ser perturbado pela “ferida” aberta no relacionamento ocasional com a pessoa que nos é estranha.
O contacto com a pessoa estranha abre uma ferida porque estamos sempre numa posição vulnerável nos primeiros encontros com as pessoas que desconhecemos. É humano, mas resolvemos esse problema com o Pretexto, não foi?
A nossa vida era real, mas com a emergência das novas tecnologias que permitem um maior contacto entre nós, deu-nos, também, uma faceta da vida, mas digital. Quer isso dizer que parte do nosso tempo de vida acontece via 1’s e 0’s que magicamente se convertem em conteúdos estimulantes no nosso cérebro, capturando a nossa atenção, olhar, pensamento, estar. Só me pergunto se é este o Pretexto que nos fará realmente felizes...
Quem anda pela rua, e troca o olhar em seu redor pelo Pretexto, anestesia-se do ambiente exterior, para se aprisionar no ambiente interior gerido pelos outros que nos controlam através das doses de dopamina libertadas no nosso cérebro e que nos dão um sentido de realização. Quem cede ao Pretexto sente-se bem. Por que razão haveria de fazer de outro modo?
Charles Baudelaire no seu O Pintor da Vida Moderna afirmava a curiosidade como o ponto de partida do génio. Curiosidade, sobretudo, pelo efeito que a vida de uma multidão de pessoas pode ter sobre nós. O gozo que a visão dessa multidão que passeia pelas ruas traz é a de que o pensamento de uma pessoa se identificava com os pensamentos de todos os que se moviam à sua volta. Havia uma energia relacional do contacto com as pessoas. Mas deixámos de olhar à nossa volta e cedemos ao Pretexto.
Quando deixamos de questionar o que nos isola do mundo significa que vivemos uma dormência da qual importa despertar se quisermos, realmente, viver a única vida que temos.
O caminho quaresmal é um convite a nos desinstalarmos e olharmos para dentro sem distracções, através da vida que se desenrola à nossa volta. Um gesto simples e difícil para muitas pessoas é guardar o Pretexto no bolso ou bolsa porque longe da vista, longe do coração. E assim, libertando esse coração de carne, despertar para os olhares desconhecidos à nossa volta e a riqueza que a vida real revela, por exemplo, através de uma boa caminhada pelas ruas no meio da multidão.