Instante

Crónicas 3 setembro 2020  •  Tempo de Leitura: 6
Será possível que a decisão tomada num instante possa mudar a face do planeta tal como o conhecemos? Sim. E a face a que me refiro, felizmente, é a que conheces. Pois, se Stanislav Petrov tivesse confiado na tecnologia, em vez de confiar na sua interioridade humana, o mundo seria bem, mas bem diferente. A lição é simples: nunca a tecnologia poderá substituir o que há de humano em cada um de nós.

Em 26 de setembro de 1983, Stanislav Petrov era o oficial de comando de um bunker secreto da antiga União Soviética em Sepukhov-15. Esta base monitorizava os satélites Russos que sobrevoavam os Estados Unidos. Um dos satélites enviou à estação o sinal de um ataque de um míssil americano, depois outro, e outro, vários. Os primeiros 15 segundos foram de um autêntico estado de choque. Os militares russos precisavam de compreender o que fazer a seguir. Todos se voltavam para Petrov.

A função de Petrov seria a de averiguar a veracidade do sinal e decidir sobre o lançamento, ou não, de um contra-ataque nuclear. Conseguem imaginar? Os sinais de luzes a piscar, as sirenes, os restantes membros da equipa à espera da decisão de Petrov. A pressão era imensa e tudo dependia da decisão que tomasse. Apesar daquilo que a tecnologia afirmava, Petrov considerou o sinal do satélite como um falso alarme. Se não o tivesse feito, e, em vez disso, agido de forma precipitada, com uma confiança absoluta na tecnologia, o mundo, hoje, talvez estivesse ainda mergulhado nas graves consequências de um holocausto nuclear.

A vida depende mais de instantes do que podemos imaginar. E a história de Stanislav Petrov que tinha na altura a minha idade, leva-me a pensar na importância da intuição humana que ultrapassa a razão. Qual a origem da sua decisão quando todos os instrumentos indicavam o contrário? Petrov dizia — «tinha uma sensação estranha cá dentro. Eu não queria errar. Tomei uma decisão, e foi isso.» Há coisas que não sabemos a razão de sabermos. São intuições tácitas que se manifestam em instantes e mostram como na fragilidade da vida humana está o génio que a caracteriza. Por outro lado, são instantes como este que nos ensinam a importância do desapego tecnológico para conservar a humanidade em nós e a capacidade de escutar Aquela voz.

Muita da tecnologia que actualmente se desenvolve pretende captar a nossa atenção a cada instante que passa. O objectivo parece claro e positivo, guardar digitalmente os momentos de felicidade para nunca mais os perdermos. Mas quantas pessoas preferem contemplar um pôr-do-sol através do ecrã onde o filmam, em vez de desfrutar plenamente daquele momento? Penso, também, nas crianças que treinam muito para o que irão apresentar na festa final da escola, para mostrar aos pais o quanto evoluíram. O que pensará aquela criança quando vir os pais a olhar para ecrã por onde filmam, em vez de olhar para ela e registarem bem aquele momento no album da sua memória?

Ao contrário de nos ajudar a viver intensamente cada instante, o modo como usamos a tecnologia acaba por fragmentar o nosso tempo em momentos insípidos que leva muitos a darem-se conta de que estiveram quase uma hora a deslizar o dedo pelo ecrã. Com que fim? A alienação é o resultado da experiência de um tempo fragmentado. Cada instante bem vivido não é um fragmento, mas um ponto de dimensão nula que une o passado com o futuro. É, literalmente, nos instantes que enraizamos seja o que for no momento presente. O único tempo que realmente temos.

Um instante é como um abrir e fechar de olhos. Pouco se consegue ver e saborear. Aliás, se diminuirmos o tempo de exposição de uma foto para capturar o momento mais instantâneo possível, essa fica quase preta porque a luz não tem tempo para imprimir a imagem no sensor. Um instante parece pouco importante no contexto de cada dia, mas será o acumular de instantes que, gradualmente, deixam a luz entrar para começarmos a vislumbrar o curso da nossa história. 

Qualquer coisa feita num instante possui um valor infinito por analogia matemática. É como dividir algo por um valor cada vez mais pequeno, ínfimo. O resultado evolui para um valor enorme e, também, por analogia, mostra como a vivência do momento presente, expresso em cada instante, é intensa. Aliás, deveríamos viver cada instante como se fosse o último, e talvez descobríssemos o que traz real autenticidade ao modo como vivemos o tempo.

Viver os instantes como experiências palpáveis, onde a tecnologia não ocupa o lugar principal, liga de modo especial a nossa humanidade ao tempo. Não estamos perdidos. Existe um sentido e direcção que dá significado ao que sentimos, pensamos e desejamos. E uma conexão humano-temporal abre a nossa consciência para o que é intemporal, ou está fora do tempo. É o transcendente que nos eleva a níveis de percepção da realidade ao nosso redor que podem salvar, literalmente, o mundo num instante.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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