A pandemia mói.
Mói o juízo por nos impedir de fazer aquilo que gostaríamos.
Mói por nos obrigar a alterar o modo de ser e estar.
Mói por nos colocar num estado permanente de alerta quando saímos do nosso ambiente.
Mói. Mas até onde conseguimos moer, e o que acontecerá quando não pudermos moer mais? Tudo talvez dependa do amadurecimento com aquilo que mói e da visão de futuro que criamos dentro de nós.
Numa
recente interpelação, o P. José Frazão S.J. reflecte sobre o modo como a pandemia está a afectar a Liturgia. Penso que todos já o experimentámos por diversos modos. Seja a pessoa que se assusta por ver alguém a chegar e a sentar-se num lugar atrás dela (eu assisti a esta cena); seja por aqueles que começam a optar pela Eucaristia online quando até poderiam ir a uma Eucaristia presencial; seja o desconforto de usar máscara, perdendo-se o contacto visual com o rosto do outro; e isto são experiências que fiz, como outros terão feito, seguramente. O P. Frazão enuncia três aspectos que o moem particularmente:
- Isolados:«a linguagem não verbal da higienização e, implicitamente, da desconfiança»— máscaras que cobrem rostos, mãos higienizadas em vários momentos e luvas, distância que separa, são alguns aspectos de segurança que arriscam tornar a liturgia funcional e inexpressiva, sinal de uma “globalização da indiferença;”
- Contidos:«dispensa do corpo e a mortificação dos sentidos: só espírito, só cabeça» — do que entendi, penso que se refere a muito da liturgia ser um acto de compreensão intelectual, por exemplo, a comunhão espiritual para o caso daqueles que acompanham a celebração online; muitos veem-se privados da comunhão física e a fragância que conhecem é cada vez mais a do gel desinfectante;
- Apagados:«participação individual, por dever ou devoção, e a passividade da assembleia» — a situação actual desfavorece o contacto comunitário, pelo que as expressões “ouvir missa,” “assistir,” “cumprir o preceito,” “dizer missa,” ou “celebrar a missa sozinho” entram no nosso horizonte litúrgico como resposta à pandemia e correm o risco de se tornar um hábito.
Mói tudo isto.
Mói, mas sentimos serem actos necessários para proteger os mais frágeis desta pandemia.
Mói, e o risco de ceder ao menos perfeito, pela possibilidade de se tornar num hábito, é a emergência de cenários que moem mais, como o sofrimento de entes queridos se forem contagiados pelo nosso descuido.
É aqui que a pandemia Covid-19 se converte numa pandemia do medo que mói a nossa vontade de a ultrapassar. Mas há algo que parece passar ao lado de tudo isto, e nos pode dar uma visão diferente das coisas.
Somos imagem de Deus, e o Amor que Ele é, não cessa de criar em cada instante. Por isso somos criativos.
Somos sensíveis à Vontade de Deus se nos aproximarmos d’Ele em cada instante. Por isso estamos atentos ao que o momento presente nos apresenta.
Ser criativo e fazer a Vontade de Deus são o modo mais humano de ultrapassar toda e qualquer crise para fazer dessa uma oportunidade de evolução cultural e espiritual. Do mesmo modo que é importante ser crítico em relação às alterações que estão a acontecer na Liturgia, penso que é mais importante ainda questionarmo-nos: o que quer Deus dizer-nos com tudo isto?
Se todos estes aspectos nos moem, resistir pode assemelhar-se a forçar a consistência do modo como vivíamos antes. E, talvez, Deus esteja a acompanhar-nos neste processo que mói para que nos tornemos farinha, quebrando com: a desconfiança que antes se vivia também, mas ninguém admitia; os gestos litúrgicos que fazíamos mecanicamente, sem pensar; e a indiferença que antes se vivia também, apesar de vermos os rostos dos outros.
A pandemia quebrou a liturgia antes da Covid-19 para nos forçar a questionar o que realmente tem valor espiritual no nosso caminho de união com Deus.
Há quem pense que todo este esforço é um reconhecimento de que não confiamos no poder de Deus para nos livrar dos efeitos nocivos para a liturgia induzidos pela pandemia. Mas quem sabe, realmente, o que Deus quer senão… Deus? O modo mais seguro é confiar no momento presente, re-inventar os gestos de fraternidade, e ser criativos no modo como amamos os outros (com ou sem máscara).
Os efeitos desta pandemia estão moer os nossos preconceitos, seguranças, confortos, costumes, o que dávamos por descontado, o rigor e o que considerávamos como certo.
Tudo o que era normal moendo torna-se farinha. E com esta farinha faremos o pão que alimentará um estilo de comunhão mais profundo com a natureza, os outros e com Deus. Mas só se abrirmos a mente, o coração e as mãos, à higienização da nossa interioridade.