Há coisas que me deixam... estupefacto. Donald Trump apressa a autorização para a exploração petrolífera de uma região protegida do ártico antes da tomada de posse de Biden. Bolsonaro acha que muitos estão a sobredimensionar os efeitos desta pandemia e que o Brasil não é um país de “maricas” (como se morrer de Covid-19 fosse da responsabilidade da pessoa que devia deixar-se de coisas, curar-se e fazer-se forte). A fraca inteligência que assistimos em pessoas com poder deixa-me estupefacto. Por que razão a lógica e a sabedoria deixaram de funcionar e a mentira consegue convencer tantas pessoas? Serão os convencidos tão pouco inteligentes como os que os convenceram?
Nas eleições americanas em 2016, quando Donald Trump estava ainda a afirmar a sua candidatura entre as diversas alternativas do Partido Republicano, num debate com um dos candidatos, o Dr. Ben Carson, surgiu a questão da ligação entre a vacinação e o autismo. Trump a favor, claro. O Dr. Carson tinha em si todo o conhecimento científico. Trump, nem por isso. Mas quando o moderador pergunta — ”Devemos parar de dizer que as vacinas causam autismo?” — Carson remete a resposta para as publicações científicas que as pessoas podem consultar e Trump, o que faz? Diz — ”O autismo tornou-se epidémico… Está totalmente fora de controlo… Pegas neste lindo e pequeno bebé, e bombeias — isto é, parece mesmo que a dose é para um cavalo, não para uma criança. E temos tantos exemplos, pessoas que trabalham para mim. No outro dia, uma linda criança, que foi à vacina, e voltou, uma semana depois ficou com uma febre tremenda, ficou muito, muito doente, agora é autista.” — Visceral. Um discurso completamente desconexo mas que atinge o âmago daquilo que nos persuade: as emoções.
Quando se cria uma imagem forte na cabeça das pessoas, mesmo que seja falsa, suscita a incerteza. É uma “verdadez” (truthiness) que mina a razão com a emoção, e deixa-nos estupefactos tempo depois, ao assistirmos a manifestações sem sentido, desvalorizando as vacinas.
Costumamos dizer que "uma imagem vale mais do que mil palavras”, ”ver para crer”, e isso mostra como somos seres visuais no sentido mais lacto da palavra, e conseguimos com a imaginação criar uma realidade assente mais nas emoções, do que nos factos. O que quer isto dizer? Talvez que tenhamos um problema de literacia.
O facto de sermos seres visuais implica que a imagem produz um grande impacte naquilo em que acreditamos. Por isso, muito daquilo que é falso, mas apresentado visualmente como real, acaba por tornar-se verdadeiro no interior de muitas pessoas. Ou pelo menos suscita a impressão de certeza e, por isso, segurança, como faz Trump. Acaba por ser um efeito que a falta de ”literacia do entretenimento” produz em nós. E a razão da importância de desenvolver esta literacia é simples: o entretenimento produz poderosas experiências emocionais nas pessoas.
Hoje, o entretenimento entra de tal modo pela cultura adentro que, se um professor não apresentar a matéria de forma “entretida”, fica conotado de “entediante”, dificultando o processo de aprendizagem. A literacia do entretenimento significa estarmos mais conscientes dos modos como o entretenimento condiciona os nossos pensamentos e comportamentos, de tal forma que possamos fazer escolhas conscientes, e ponderadas, sobre o uso e reacção ao entretenimento. É cada vez mais importante saber ler o que está por detrás de cada momento de entretenimento (sim, a política americana mostra como é, cada vez mais, um reality show). E o resultado de desenvolvermos essa literacia será ficar estupefacto.
No início da pandemia havia quem dissesse que se estavam a cometer pecados contra a eucaristia porque a hóstia a comungar era dada através de um saquinho de plástico. Ao investigar sobre a veracidade desta ideia (ridícula) percebi que foi uma sugestão do governo italiano rejeitada pela Conferência Episcopal Italiana. Mas isso levou alguns a propor voltar-se ao uso das pinças eucarísticas, instrumentos usados no período da peste para a distribuição da comunhão. Estas pinças têm um significado litúrgico pelo reconhecimento da dignidade do sacramento, materialmente expresso, na partícula consagrada. Não me lembro de ter havido qualquer Igreja que tenha adoptado esta solução, mas seria, no mínimo, uma experiência curiosa que exige alguma destreza e delicadeza das mãos do sacerdote, talvez similar à exigida aos cirurgiões.
Seguramente que estupefactos ficam pouco mais de 73 milhões de americanos que votaram em Donald Trump, ao verem Biden promover o retorno ao Acordo de Paris para as alterações climáticas, a constituir equipas de combate à Covid-19 e a querer proteger a Criação, em vez de promover a exploração dos recursos para o bem económico dos americanos. Na prática, todos vivemos estupefactos com o que se passa.
Ficar estupefacto é, de certo modo, reconhecer a pequenez da nossa opinião diante de forças que controlam os destinos culturais do mundo, afectando-nos, sem que nós queiramos. Mas isso é bom.
A etimologia de estupefacto está no particípio passado do verbo em latim stupefacere que significa: tornar sensível a. Aquele que fica estupefacto diante das coisas ilógicas deste mundo significa que ainda sente alguma coisa, e não se tornou insensível, como acontece com muitas pessoas. Com o tsunami de informação que recebemos todos os dias, a vida digital tem-nos insensibilizado aos factos, uma vez que nos fomos acostumando à informação que confirma aquilo em que acreditamos.
Não deixes de ficar, por vezes, estupefacto. E que isso sirva de motivação para ir a fundo nas questões ligadas aos turbilhões culturais deste mundo. Pois, uma maior consciência a partir de uma leitura crítica dos acontecimentos, humaniza.