Fecho

Crónicas 3 dezembro 2020  •  Tempo de Leitura: 5
Li que havia muitos alunos a regredir no seu percurso escolar por causa do fecho das escolas como medida preventiva de combate à Covid-19. A regressão talvez não esteja no fecho, mas no fechar das famílias à abertura de mente que o momento cultural oferece. Já não se lê, ou se escreve à mão quando estamos em casa. A maior parte do tempo é gasto, na prática, em entretenimento e isso tem um preço: o fechar da mente. Mas será que as crianças vêem um exemplo de atitude diferente nos pais? E mesmo que vejam os pais a ler e a escrever, isso produz efeito?

A crise cultural que o medo pelo fecho das escolas, na recente tolerância de ponto, por exemplo, aponta, poderá ser uma crise de literacia. As pessoas sabem ler, mas não pegam, naturalmente, num livro quando se encontram aborrecidas e a precisar de algum estímulo. Antes, pegam no telemóvel e navegam tempos infindáveis pela internet ou redes sociais.

As pessoas sabem escrever, mas não pegam, naturalmente, numa caneta e caderno quando se sentem ansiosas e stressadas, de modo a se libertarem interiormente, usando o fluir das palavras desenhadas pela mão para materializar os turbilhões que nos agitam por dentro. Preferem teclar, comentar, “Like-ar”, “scroll-ar”, usando mais (alguns d)os dedos do que a mão.

O entretenimento que nos chega através dos ecrãs não é mau e pode relaxar, mas quando preenche a maior parte da nossa atenção, fecha a mente sem nos darmos conta disso. O cérebro humano não está feito para ler ou escrever, mas faz-se, literalmente, com essas duas actividades. Isto é, são esforços que estimulam as ligações neuronais que geram pensamentos, ideias novas, e desenvolvem a literacia em nós. A literacia que abre o fecho da profundidade.

Quando lemos ou escrevemos, criamos momentos e espaços de silêncio para viver mais intensamente a solitude (encontro com os nossos pensamentos) e a quietude (experiência da pausa e da lentidão intelectiva). Mesmo antes da possibilidade dos confinamentos, ou seja, antes da pandemia, escrever e ler contra-balanceavam o fechar da mente (quando não o fazíamos) com o abrir do fecho da mente (quando o fazemos).

A caneta e o papel utilizam processos visuais, motores e cognitivos que não usamos com a tecnologia dos ecrãs. Ao escrever criamos memórias intemporais, valorizamos aqueles a quem dirigimos a escrita (por ser raro), sentimo-nos bem (ou melhor), cada palavra conta, melhoramos a criatividade, ficamos mais concentrados e não precisamos de carregar a bateria para usufruir de tudo isto.

A página em papel que lemos molda-nos. Somos nós que controlamos o seu virar, em vez de sermos controlados pela tentação do próximo link embebido numa imagem que salta à vista. Não foi a leitura que Deus usou para tocar o coração de Santo Agostinho?

«Até quando, Senhor, hás-de estar irritado! Esquece-te de minhas iniquidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: “Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?” Assim falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, que cantava e repetia muitas vezes: “Toma e lê, toma e lê”.»

Depois de algum tempo consegue chegar ao Livro dos Livros e:

«Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne”.»

E assim começa o seu caminho de conversão. Com uma palavra de Deus concretamente dirigida à sua vida, ao seu modo de ser e estar, e um convite inequívoco à mudança.

Se sentes que não tens paciência para ler, e menos ainda para escrever, é normal. É a vozda resistência. A única coisa que essa quer é a tua dependência do fácil e efémero entretenimento. Pretende controlar os teus pensamentos em vez de gozares da liberdade de os gerar e saborear.

Resiste à resistência com a lentidão. Isto é, começa devagar. Pode ser com duas páginas ou dois minutos de leitura. Pode ser um parágrafo, ou somente uma frase. Pois, muitos “poucos” fazem mais do que imaginamos e abrem o fecho do caminho para uma vida profunda.


SABER MAIS

  • Huettig, F., Kolinsky, R., & Lachmann, T. (2018). The culturally co-opted brain: How literacy affects the human mind. (LINK)

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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