Destrivializar

Crónicas 17 dezembro 2020  •  Tempo de Leitura: 6
O ouro é valioso por ser raro. Uma carta recebida e escrita à mão é preciosa por ser rara. Se um filho que, habitualmente, não lê, pega num livro e pede-nos para lhe oferecermos, é difícil recusar, por ser raro. Ou seja, tudo o que é raro tem valor. Aliás, a célebre frase — «uma imagem vale mais do que mil palavras» — de origem oriental, foi massificada pela primeira vez nos EUA por Frederick R. Barnard em Dezembro de 1921, sob o pretexto de iniciar uma nova era na publicidade por ser efectiva na transmissão de uma mensagem. Mas o que pode acontecer a algo bom que se repete, repete e repete? “Trivializa-se.”

Neil Postman em Technopoly (Tecnopólio) faz uma reflexão profunda sobre a rendição da nossa cultura à tecnologia, de tal modo que essa controla a forma de compreendermos a realidade à nossa volta. Postman diz que — «o tecnopólio elimina as alternativas a si mesmo (...) [isto é ] não as torna ilegais. Não as torna imorais. Nem sequer as torna pouco populares. Torna-as invisíveis e, por isso, e irrelevantes.» Uma imagem antes valia mais do que mil palavras. Mas, hoje, com a evolução tecnológica que levou à proliferação de imagens,— como selfies, fotos de tudo e todos, — uma imagem pode valer muito pouco. As imagens “trivializaram-se”. E isto não acontece só com as imagens.

Quando uma pessoa usa sempre a mesma palavra, repetidamente, o efeito da trivialização é o mesmo. Diz Postman a este respeito que «ao dizer uma qualquer palavra, mesmo que seja significativa, vezes e vezes sem conta (...) mais cedo do que pensamos, iremos perceber que a palavra se transformou num som sem significado, com a repetição a drená-la do seu valor simbólico.» E esta trivialização não só depende da frequência com que usamos os símbolos, mas, também, do contexto indiscriminado em que são usados. Foi ao pensar nesta viagem de trivialização daquelas palavras, e imagens, que possuem um sentido e significado especiais na nossa vida que me lembrei dos símbolos de Natal.

Pensemos no Pai Natal. Quando na catequese falaram à minha filha mais nova de S. Nicolau, ela ficou fascinada por ter percebido que o Pai Natal, diga-se, S. Nicolau, era um bispo! Ou seja, era uma pessoa como outras que conhece de carne e osso e são bispos. Já agora, nenhuma das crianças sabia que S. Nicolau era um bispo.

O que me expressou a seguir foi a tristeza de que essa realidade nada tem a ver com o que a sociedade fez dessa figura. No próximo ano em que o papa nos convidada descobrir a figura de S. José, isto é, a figura do pai no âmbito da família, vemos neste S. Nicolau comercial pintado pela Coca-Cola com uma veste nova e nome novo (pai natal), uma trivialização da figura do pai. Mas também penso no presépio.

Quando vejo o quanto se investe para se construir pelas cidades presépios de todos os modos e feitios, o primeiro pensamento que tive foi o de um gesto evangelizador. O gesto de voltar o olhar das pessoas para o lugar que a Sagrada Família pode ter como modelo para as nossas famílias. Isto é, modelos de acolhimento de Jesus no meio de nós através do amor recíproco entre os membros de uma família. Mas será isso que acontece? Ou estará o presépio a trivializar-se pelos inúmeros modos tecnológicos que temos hoje de os construir pelas cidades?

O que pensarão as pessoas de uma cidade quando passam por um presépio? A impressão que tenho é a de ser, perfeitamente, indiferente. Podiam estar os reis magos sentados em cima dos seus camelos, ou pastores com as suas ovelhas, ou anjos a soprar na trombeta, que o resultado seria o mesmo: indiferença. Por que razão? Triviliziação.
Por outro lado, se esses símbolos não fossem os de eleição em tempo de Natal, menos significado teria ainda esta marca da experiência cristã na vida de cada pessoa e das famílias a que pertencem. Será possível destrivializar? Sim, se nos embrenharmo-nos pelas histórias.

No tempo em que a minha mãe era criança, o Natal era permeado de momentos em redor de uma lareira com o pai a contar histórias. Hoje, imagino como isso seria algo impossível por qualquer filme ser mais entusiasmante do que um pai a contar histórias reais ou inventadas. Mas Cícero dizia que «permanecer ignorante das coisas que acontecem antes de se ter nascido é permanecer infantil.» A História e as histórias são um dos modos melhores para tomarmos consciência do significado de cada coisa, da origem de cada ideia e da razão pela qual acreditamos nela. Talvez conhecer as histórias de pessoas que mudaram o mundo nos ajude a entender o fio condutor dos eventos que nos trouxe até o hoje da História que vivemos e, assim, compreender melhor, também, a nossa história pessoal.

O presépio nada é sem conhecermos a história de Jesus. Essa é uma história profunda que dá sempre um sentido e significado novos a cada momento da nossa história. Mas, para isso, convém ler o Evangelho, quem sabe, um livro a abrir nas nossas casas na noite de Natal e lido em família.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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