Há dias, como a véspera, que são anúncios do dia seguinte. Parece, inclusive, serem dias que perdem a sua importância pelo ofuscar do dia-D que lhes sucede. Podemos até desgostar destes dias de véspera pela ansiedade que podem gerar. Porém, não posso esquecer como tudo o que procuramos fazer bem precede de uma cuidada preparação na véspera. E, se não fizermos um momento de pausa para re-centrar a nossa atenção naquilo que, realmente, tem valor, podemos deitar tudo a perder. A véspera é esse dia de pausa. E tem mais valor do que muitas vezes lhe damos.
Por vezes sinto que a véspera é um “ontem” vivido no momento presente. E, por isso, corre o risco de ser um dia menos vivido e desprezado. Mas cada dia é um dom e fico a pensar sobre o que de especial pode ter uma véspera.
O dia véspera de umas eleições é dedicado a reflectir. Quando penso na véspera de Natal, o pensamento mais comum é o de que essa reflexão gira em torno das refeições a preparar. Tem o seu valor, sem dúvida. Mas, seguramente, o Natal pede uma reflexão mais profunda do que menus. Mais do que celebrar a vida, pelo nascimento de um bebé; ou mais do que celebrar a família, reunida ao redor da mesa; é a consciência de que o Natal é a celebração de uma realidade que ainda não digerimos totalmente: a presença física de Deus entre nós.
Por vezes sinto ser algo inconcebível. Deus! Senhor do Universo. Ilimitado na liberdade de ser e estar. Alguém que não existe como tudo o que no mundo existe por ser existência. Aquele sobre O qual, por mais simples ou complexos sejam os pensamentos, uns mais abstractos, outros mais concretos, estará sempre para além de qualquer pensamento ou experiência. Esse Deus faz-se humano. Estranho.
Deus terá a Suas razões e somente em Jesus que nasce, cresce, relaciona-se, trabalha, dá-se a si mesmo, inspira a mudar de vida, desafia o pensamento cultural do seu tempo, e assegura a Sua presença no meio de nós para sempre, só em Jesus, Deus revela-Se totalmente. Mas temo que não estejamos totalmente cientes disso.
Talvez porque a escala de tempo necessária para compreender estas coisas seja bem maior do que a escala de tempo de uma, ou mais gerações. E como entre gerações existe sempre algo que se perde, parece estarmos diante de um eterno recomeçar em relação à compreensão das razões de Deus ter-Se feito humano.
É difícil pensar estas coisas quando nos reunimos em família, e devido às saudades, falamos de tudo e mais alguma coisa excepto da experiência que nos reúne. Daí a importância de dedicar um pouco do dia de véspera a Deus e reflectir sobre este Seu gesto insólito.
O Universo visível é tão vasto e a diversidade de vida na Terra tão grande que, naturalmente, sinto-me inclinado a crer na existência de vida, e vida inteligente, noutros planetas de outros sistemas solares de outras galáxias. Perguntava um amigo meu há anos, que acreditava no mesmo que eu — ”por que razão Deus se fez humano?” — e implícita estavam duas outras questões: 1) somos especiais? 2) como se terá revelado aos outros seres inteligentes não-humanos? Parece inútil pensar nisto, sobretudo para aqueles que não acreditam nestas coisas, mas este acontecimento está de tal modo envolto em Mistério que um “porquê” torna-se inevitável.
A presença de Deus entre nós, foi precedida, na véspera, de um caminho e procura de um lugar, e fico a pensar como a nossa vida parece tornar-se numa permanente véspera por sentir estarmos sempre em caminho e à procura do nosso lugar no meio da imensidão cósmica.
Por outro lado, uma pessoa pode perder-se na vastidão cósmica se não descer ao concreto daquilo que a vida quotidiana nos pede em cada momento. Na véspera de descer, também Deus, ao concreto da vida humana, o que terá experimentado, vivido, e pensado?
O mundo está de tal forma sujeito às contingências que não havia forma de saber que narrativa se desenrolaria após o Seu nascimento. A véspera envolve-nos no mistério da incerteza daquilo que se viverá no dia seguinte. Mas o que a história nos revela é que o caminho continua, e o lugar que nos liga à história é o momento presente. Aliás, no Natal, o espaço liga-se ao tempo numa unidade inextricável para nos revelar uma verdade que — arrisco — me parece absoluta: somos seres de esperança.
Esperança que toda a ansiedade sentida na véspera de algo grande como a vida, ou como a morte, se dissipará no horizonte de sentido e significado que encontraremos, um dia, imersos na presença eterna do Pai.