Quando a doença ultrapassa a ciência

Crónicas 4 janeiro 2021  •  Tempo de Leitura: 3

Com a pandemia, ouvimos muitos profissionais de saúde desabafarem sobre o difícil que é querer salvar vidas e não ter como as salvar. Nós, que fazemos o juramento pela vida, somos confrontados com o momento em que a doença ultrapassa a ciência.

 

Sou enfermeira há 6 anos e posso-vos garantir que há momentos que não se esquecem. Recordo-me do primeiro doente que faleceu comigo, do primeiro doente a quem realizei a preparação do corpo após a morte e de muitos outros que me permitiram acompanhá-los nos últimos dias da sua vida.

 

Devido à minha personalidade, crio facilmente relações empáticas e terapêuticas com o doente. Coloco-me muitas vezes na sua pele e esforço-me por conseguir transmitir-lhes a segurança e conforto necessários, através do conhecimento, mas também através do sentido de humor e da partilha. Acredito que também o faça com maior facilidade porque também eu sou doente e sei o que é estar do outro lado.

 

Ao longo deste anos, já fui alvo de muitos desabafos e de partilhas de histórias de vida e de receios. São muitas as vezes em que me perguntam “Vai correr tudo bem, não vai?” E nessa altura apenas respondo que até o Sol se deita para que a Lua possa brilhar.

 

Se anteriormente já valorizava os pequenos gestos e palavras, agora ainda mais. Aprendi que um sorriso, um aperto de mão, uma palmada nas costas e uma piada confortam muito mais de que um diálogo enorme. Aprendi a ler nos olhos e a responder com silêncio. Mas, essencialmente, aprendi a lidar com a morte.

 

Não é fácil ver partir alguém a quem dedicamos grande parte do nosso tempo e com quem, entre autocuidados, medicação e diálogos, partilhamos parte do que somos. Agora compreendo quando dizem que quando morre um doente, morre parte de nós.

 

Acreditem que lidar com a morte de perto nos obriga a crescer. Nós que estamos todos os dias na linha da frente (e não apenas durante a pandemia), somos obrigados a tomar grandes decisões. Decisões que nos fazem questionar a ciência porque na grande parte das vezes a realidade difere da teoria.

 

Também nós temos de saber quando é que devemos parar de tratar e aumentar o cuidar. Ficar ali, ao lado, garantindo todo o conforto numa fase em que já nada há a fazer. É difícil vivenciar tudo isto. Também nós choramos. Também nós temos medo, por nós, pelos nossos e pelos nossos dos outros. Mas continuamos lá, na linha da frente, todos os dias.

 

A verdade é que todos os dias, com cada doente que passa pelas nossas mãos, recebemos lições de vida e nos questionamos: O que é realmente importante na vida? Estarei eu a viver a minha vida, ou a vida que os outros querem que eu viva? Quanto tempo mais estarei neste mundo? Lidar com a morte no dia-a-dia impossibilita evitar refletir sobre a nossa própria existência e finitude. Passamos a valorizar as pequenas coisas da vida e a aproveitar todos os minutos como se fossem os últimos.

 

Porque nós deixamos os nossos para cuidar dos vossos e fazemos isso com amor, todos os dias. Porque o amor é o que realmente importa quando a doença ultrapassa a ciência.

A Joana nasceu em 1992, no Porto. Licenciou-se em Enfermagem na ESEP, com Mestrado em Musicoterapia na Universidad Autonoma de Madrid. É Animadora de Pastoral Juvenil e Voluntária Missionários com os Missionários Claretianos desde 2010, tendo estado por duas vezes em missão em São Tomé e Príncipe e participado nas JMJ Madrid 2011 e Cracóvia 2016.

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