Primeira

Crónicas 7 janeiro 2021  •  Tempo de Leitura: 6

O que vivemos na primeira semana de 2021 senão o retorno à normalidade da pandemia, mas cheios de esperança pelo novo ano que temos pela frente? Porém, este é o tempo certo para iniciar as primeiras mudanças de modo a realizar os nossos propósitos, ou a primeira oportunidade de os definir se isso ainda não aconteceu. 

Começámos a 1 de janeiro com a primeira celebração pela Paz. Depois, celebrámos a primeira manifestação física de Deus no dia da Epifania. Celebramos a vida em cada dia com as primeiras palavras — bom dia! E quem sabe se, para alguns, não foi a primeira vez em que pensaram dar uma primeira oportunidade a uma vida com maior minimalismo digital. Na primeira semana somos desafiados nas primeiras atitudes do ano, primeiros pensamentos, desejos e motivos onde colocamos a nossa esperança. Talvez seja o momento de viver uma primeira etapa do ”Amável Mundo Novo.”

Em 1932, o escritor Aldous Huxley publicou uma obra distópica passada no século XXVI, onde a sociedade está ultra-estruturada, e destrói-se por dentro, não a partir daquilo que receia, mas a partir daquilo que a delicia. As manipulações que assistimos nas redes sociais e que levaram à eleição de Donald Trump em 2016, ou que geram um grande endividamento das pessoas pela cedência aos anúncios, são o aviso de Huxley tornado realidade. Aquilo que atrai o nosso olhar, a nossa atenção, são a primeira queda do nosso potencial criativo, sem nos darmos conta disso e, aliás, regozijando com tão fácil e bom entretenimento. É a realização do discurso de Miranda na peça de Shakespeare “A Tempestade”, e que deu título ao livro de Huxley — «Oh, admirável mundo novo.» É este mundo amável?

Toda a tecnologia é um acto de co-criação com Deus. Por isso, na sua essência, a tecnologia é boa. O problema identificado por muitas pessoas é o uso que fazem da tecnologia que têm nas mãos. E aí, como Pilatos, as grandes companhias digitais lavam as suas mãos e não assumem qualquer responsabilidade.
O mundo digital aproximou muitas pessoas e familiares distantes. Por isso, pela primeira vez na história humana o «não há longe, nem distância» imaginado pelo escritor Richard Bach, deixou de ser algo que se refere ao coração, mas entrou pelo mundo físico adentro através dos novos dispositivos electrónicos e da internet. Enquanto a distância nos levava a reforçar a relacionalidade na interioridade com génese na amizade, o que diríamos nós neste Admirável Mundo Novo onde a amizade foi, de certo modo, digitalizada e, por isso, artificializada?
O mundo são as pessoas. Verdade. Mas, também a natureza, os ecossistemas e as montanhas são o mundo para nós. A ideia de que, quanto mais conhecermos o mundo, mais nos damos conta do sentido e significado que tem, acaba por correr o risco de se perder na trivialização do emaranhado imenso de informação e fluxos de informação que passam por nós, ininterruptamente, todos os dias, todo o dia. O P. Alfredo Dinis, sacerdote jesuíta que partiu em 2013, era um apaixonado da comunicação online. Para mim, foi a primeira pessoa que deu os primeiros passos num diálogo estimulante em Portugal entre crentes e não-crentes através do mundo digital. No último mês da sua vida, disse — «procurei como filósofo compreender o mundo. Estranhamente, sinto que o mundo tem um lado incompreensível. O mundo talvez exista não tanto para ser compreendido, mas mais para ser amado.» Como ele, talvez seja o momento de, pela primeira vez, pensarmos no que significa para nós amar o mundo.
O mundo cheio de incertezas, pandemias, tempestades, contingências, tremores, inundações, incêndios. Um mundo onde a dor nos alerta para a vida, e o amor é a única coisa que fica quando dele partimos pela morte. 

Podemos escolher viver na escuridão do admirável mundo novo que nos destrói por dentro com a dormência do pensamento adveniente do consumo que fazemos de entretenimento pelo olhar. Essa escuridão faz-nos perder o deslumbramento da surpresa de cada momento do nosso dia como se fosse vivido pela primeira vez.

Mas, não provém o Amável Mundo Novo da perplexidade do olhar simples e genuíno de quem o vê, pela primeira vez, em cada dia que nasce e decide amá-lo? Amá-lo pelas pessoas, pelas paisagens, pela água, pelo Sol, pelo céu, pelos animais, pelos relacionamentos que nascem da vida que flui sem se distrair. Amá-lo saíndo da zona de conforto para, quem sabe, encontrar o conforto na sede de sentido saciada pela primeira vez em que notamos algo de novo nesse mundo. Não haprimeira etapa para viver o Amável Mundo Novo se pensarmos que amar é uma etapa única.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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