Janela

Crónicas 28 janeiro 2021  •  Tempo de Leitura: 5
A neblina que ontem cobria os montes dissipa-se. Alguém passeia o cão pela rua. Um carro passa, depois uma carrinha. O céu esbranquiçado pelas nuvens mostra que é dia. Sei que o Sol emerge no horizonte, mas não o vejo. Os momentos que passamos a contemplar o que a nossa janela permite ver parecem inúteis. Mas o acto de observar é uma oportunidade única para notar em coisas novas, e tudo graças à transparência de uma simples janela.

 
Olhar pela janela é a uma arte. Uma arte para os tempos de confinamento. O que vemos de dia ou de noite pode fazer-nos sentir empolgados pelas oportunidades que ideias novas nos abrem, ou apreensivos por receios novos também. Estar à janela e olhar pode dar-nos um sentido de liberdade ou fazer-nos sentir momentos de claustrofobia. 

 
A janela representa uma fronteira porosa entre o interior que nos abriga e a narrativa exterior que se desenrola. A janela representa o momento em que uma fronteira se converte num quadro dinâmico que temos nas nossas paredes, sempre em mudança. Mostra-nos, por vezes, onde poderíamos estar, e não podemos. E esse sentimento será constrangedor se nos mantivermos nele por mais tempo do que seria suposto.

 
O pintor italiano Leon Alberti descrevia uma pintura como uma janela aberta. Quantos pintores não usaram as janelas como ponto focal entre a escuridão interior e a luminosidade exterior? Como diria o pintor alemão Caspar David Friedrich, a experiência de observar (e pintar) o que uma janela permite é a de que «tudo à distância torna-se poesia.» Talvez seja esse o motivo de nos silenciarmos quando estamos à janela. Imaginamos as histórias por detrás de cada momento observado — «De onde vem aquela pessoa e para onde vai? O que estarão a cozinhar que leva ao fumegar da chaminé? O que se passa no cimo daquele monte?»
 
 
A arte de contemplar à janela desperta em nós o desejo de algo que não sabemos bem que forma tem. Revela-se como um momento misteriosamente misterioso. Uma janela não separa, embora separando, mas antes liga-nos ao privilégio de sair de casa, sem sair, pela virtude da transparência.

 
Do exterior, a janela torna-se uma forma de testemunhar o que vivemos interiormente. Daí que seja uma metáfora perfeita entre os nossos actos e o carácter. Podemos adornar as nossas janelas com o que quisermos, mas nada se compara à simplicidade da experiência que nos proporciona. 

 
Recordo-me de em jovem colar coisas à janela. Não me recordo do motivo. Talvez por desejar que a luz que por essas entra iluminasse o conteúdo do papel colado? Sinceramente, não me recordo e penso como a janela pode ser um convite a viver, sistematicamente, no momento presente, e daí que me esqueça de motivações passadas. 

 
Quando faço caminhadas e passo por ruas onde as casas têm janelas baixas, não resisto à curiosidade de entrar por um breve instante naquela casa. A janela tornou-se naquele momento a arte de contemplar a família e poder imaginar quantas histórias estão por detrás de cada detalhe.

 
A partir de 1995, com a expansão da internet através do lançamento do Windows95, cada ecrã tornou-se numa janela digital através do qual podemos ver o mundo tal qual é. Mas, quando nos apercebemos da capacidade de editar aquilo que essas janelas nos mostram, a realidade deixou de o ser e muitos começam, hoje, a questionar o que é, de facto, real. Os ecrãs tornaram-se janelas através das quais outros exploram a nossa vulnerabilidade e distorcem a autenticidade do mundo real. Dá-me vontade de fechar o ecrã e voltar a olhar pela janela.

 
De dia é a luz que entra. De noite somos nós que iluminamos as ruas com as nossas janelas. E quando se apagam todas as luzes podemos contemplar as estrelas. E, assim, uma simples janela leva-nos a contemplar a imensidão que o universo é e no qual somos uma ínfima parte que o pensa.

 
E quando não há janelas? Penso nas pessoas que durante a pandemia estavam em viagem e tiveram de ficar em quartos de hotéis. Se não tiverem fundos para pagar os quartos com janelas, o seu olhar fica restrito às paredes e não consegue beneficiar desta subtil arte contemplativa. É duro e não há solução senão sair. Mas há uma outra possibilidade das janelas deixarem de — por assim dizer — existir: abrirem-se.

 
Faça frio ou calor, por vezes, a arte de olhar pela janela culmina na sua abertura para respirar o ar fresco ou receber no corpo os raios de Sol. Neste momento em que as janelas expressam a necessidade de estarmos confinados, revelam-se uma experiência libertadora que vale mais a pena experimentar que pensar.

 
 
Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
Acompanhe os escritos do autor subscreveendo a Newsletter  Escritos 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail