Nada

Crónicas 11 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 8
Qual a forma mais pura de viver a vida? Parece um cliché, mas só pode ser viver para a vida. Quem dedica a sua vida somente a viver, não vive da forma mais pura? Não estou a pensar em diversão, ou grandes feitos intelectuais, grandes sacrifícios, mas, muito simplesmente, tudo o que fazemos, pensamos, decidimos esteja voltado para o acto de viver em si mesmo. O que nos impede de chegar a esse ponto é que, para viver tão puramente assim, nada, mas nada deveríamos fazer. Parece estranho, mas, realmente, quem nada faz, vive apenas para o acto de viver. Parece uma ideia tão ridícula, quanto impossível, senão tivesse conhecido a história de Chistopher Knight.

Aos 20 anos, Chris guiou o seu carro até onde o combustível o levasse, e a partir desse momento, decidiu viver sozinho, e nada fazer senão viver. Não caçava, ou construiu uma casa (como Thoreau em Walden). Mas roubava para viver. Estranho e pouco inspiridor, mas considero a sua história como uma das mais impensadas que alguma vez li, majestosamente contada pelo jornalista Michael Finkel em The Stranger in the Woods. Depois de ter sido apreendido, Knight admitiu os mais de 1000 furtos, e não fugiu às responsabilidades pelo que tinha feito. Inclusivé, admitiu o quanto mal se sentia por ter roubado várias pessoas durante mais de 25 anos. Eram sempre casas de férias, quando não estava ninguém presente, e roubava apenas o que precisava para viver. A sua subtileza era tal que fez crescer em Little North Pond a lenda do hermita que todos sabiam existir, mas que ninguém conseguia encontrar. Porém, os hermitas reconhecidos com tal, não o reconheciam como hermita porque roubava. E um hermita vive daquilo que a natureza oferece. Seria, então, Christopher Knight um verdadeiro hermita?

Não. E o problema é que o seu perfil não encaixa em nenhuma categoria. Depois de ter sido preso, sem história de família difícil, ou alguma aparente doença psicológica, houve quem oferecesse um terreno para viver, dinheiro para pagar a fiança, a sua mão em casamento, mas ele nada aceitou. Queria apenas que o deixassem sozinho, em paz, com a sua floresta. Como pode alguém desejar viver em profunda solidão e ser feliz com isso? Estranho. Ou talvez ele não estivesse, realmente, só.

Neste tempo de pandemia em que muitas pessoas com mais idade vivem períodos de maior solidão para protecção da sua saúde, há quem não aguente. Soube há dias a história de um colega que procurava alguém que pudesse prestar apoio psicológico ao seu pai, que está em perfeitas condições físicas para viver sozinho, mas com o confinamento, não tem conseguido lidar bem com a parte psicológica. O ser humano é profundamente relacional, e não foi criado para estar só. Aliás, não é essa a verdade profunda subjacente à história de Adão e Eva?

Apesar de ler e ouvir rádio, o que ocupava a maior parte das actividades de Chris Knight durante décadas imerso numa floresta foi… nada. Ele sentava-se no seu balde invertido, ou na sua cadeira de verga, e contemplava em quietude. Não havia cânticos espirituais, mantra, ou posição de ioga. A sua mente, simplesmente, vagueava, sonhando alto. Dizia Chris — «Meditação. Pensar sobre as coisas. Pensar sobre qualquer coisa que quisesse pensar.» Nunca se aborreceu. Aliás, disse a Finkel que nem compreendia muito bem o conceito de aborrecimento. Pensou que, talvez, esse conceito se aplicasse apenas a quem sentia, a todo o momento, o dever de estar sempre a fazer seja o que for. Parece ser uma paz que só os irresponsáveis podem viver, mas quer isso dizer que as responsabilidade nos impedem de viver? 

Na China antiga, os hermitas haviam compreendido que wu wei — o “não-fazer” — era uma parte essencial da vida, e Knight acreditava que não havia já mais espaço no mundo para este “não-fazer”. Mas este nada de Knight tinha uma componente particular: observar a natureza. Não a visão bela, mas toda a visão, incluindo o seu aspecto bruto e cruel porque não existem fortes e fracos naquilo que diz respeito aos ritmos da natureza. Todos sofrem. Uns aguentam mais, outros menos. A sua história pôs-me a pensar na solidão que muitos vivem neste tempo.

O que fazia Knight na vida? Vivia para viver. Um nada positivo, por assim dizer.

Este parece-me ser o ponto fulcral que levou muitas pessoas a sofrer com a solidão durante os períodos de confinamento. Numa sociedade que se afirma como moderna, vivemos-se mais para o que de útil se faz, do que vivemos somente para viver, sem nada fazer. Porém, o elemento contemplativo da natureza diz-me que Christopher Knight não estaria assim tão só como poderia parecer. 

A felicidade humana está intrinsecamente ligada aos relacionamentos. E o que Knight experimentou na floresta é difícil de explicar, mas nas suas palavras — «a solitude confere-nos um aumento de algo que tem valor. (…) A solitude aumenta a minha percepção. Mas aqui está a coisa estranha: quando aplicava a minha percepção-aumentada a mim próprio, eu perdia a minha identidade. Não havia audiência, ninguém a quem desempenhar o meu papel. Não havia necessidade de me definir. Eu tornei-me irrelevante.» E o seu biógrafo Michael Finkel interpretou estas palavras como a dissolução da linha que dividia Knight da floresta e, por isso, o que aos olhos do mundo parece ser um isolamento, na realidade, era uma profunda comunhão com a natureza.
Nem durante a pandemia parece exequível pensar que esta experiência insólita nos possa dizer alguma coisa. É uma experiência invulgar, sim, mas, aparentemente, irrealista, e de onde se possa extrair algo para ajudar quem vive a solidão a superá-la, a não ser que mude de perspectiva.

Se respiras, vives, pensas, podes amar, ou contemplar. Nada precisas de fazer para que a tua vida tenha valor porque o acto de viver em si deveria ser razão suficiente. Aliás, trazer para a nossa vida momentos em que nada fazemos, talvez nos ensinasse a viver somente para a vida. Nem que seja por um simples minuto de nada.
Um dos segredos desta experiência é o subtil efeito da contemplação da natureza. Porém, é-me difícil conceber qualquer ontologia (natureza do ser) nesta experiência de comunhão profunda pela contemplação do mundo natural que não esteja ligada à presença de Deus no que há de mais interior a cada relacionamento. A Deus nunca ninguém O viu, mas todos o podem sentir. E o que fazer por isso? Talvez um pouco de… nada.

 
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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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