Entramos no deserto. A areia seca e ardente durante o dia contrasta com a água que pode congelar durante a noite. A impressão que fico de um deserto não é tanto a da ausência, ou dos extremos, mas da limpidez do céu que deixa entrar ou libertar, todo o calor. Lembro-me do ditado — “pão, pão, queijo, queijo.” Isto é, as coisas são como são quando vivemos de um modo claro. Não importa se estamos correctos ou errados, desde que sejamos coerentes e humildes, sobressai sempre a limpidez do nosso carácter.
«Cria em mim, ó Deus, um coração puro» — canta o salmo 51(50) — «renova e dá firmeza ao meu espírito.» É o desejo de limpidez. Uma segurança na imagem que temos de nós próprios, na imagem que transmitimos aos outros, e na coerência entre ambas. Mas existem várias formas de deturpar essa visão. O grande desafio está em perceber o que a deturpa. Se vem de nós, ou se vem do que está fora de nós. Porém, se o olhar deturpado, por exemplo, está do lado dos outros, podemos responder apenas com amor, mas se estiver do nosso lado, podemos sempre perceber o que o deturpa.
A ideia da falta de limpidez faz-me pensar, por exemplo, nas lentes dos óculos. Podem estar embaciadas e, por isso, não vejo bem as coisas. Ou, por vezes, o melhor é parar para poder desembaciar as lentes, em vez de continuar o que estou a fazer, porque a falta de limpidez afecta os meus actos. Por outro lado, as lentes podem estar mesmo sujas, sendo necessário limpá-las. Ou podem estar ainda desadequadas porque o meu problema é não ver bem ao longe, e quando o que vejo está perto de mim, por preguiça, prefiro ver com menos limpidez que dar-me ao trabalho de tirar os óculos. A limpidez afecta a visão que temos das coisas e do mundo.
Quando a água da torneira não sai limpa, que sentido tem lavar nela as mãos? Se a água que verto no copo não está limpa, será inconcebível pensar em bebê-la. Mas, por vezes, a água está tão limpa que faz sobressair a sujidade do fundo e gera, na mesma, um sentimento de repulsa. Quer isso dizer que a limpidez deixa transparecer a verdade entre aquele que vê e aquilo que vê.
O tempo de deserto que pinta o período quaresmal dos traços que expressam a necessidade de fazermos um exame de consciência à nossa vida, é um período para reflectir sobre a limpidez da vida profunda que temos, e desembaciar, limpar ou retirar o que é desadequado.
O embaciar provém da condensação do vapor de água quando a temperatura exterior é inferior à interior. O modo de desembaciar consiste usar um escoamento de ar que evapore as gotículas depositadas. É como a brisa fresca proveniente das ideias novas que Deus suscita em nós. Podemos experimentar esta brisa pela Palavra, pela oração, pelos gestos de amor, ou por qualquer coisa que volte o nosso olhar para o essencial que, em última instância, é Deus.
A sujidade são pequenas partículas que se depositam ao longo do tempo sem nos darmos conta disso. E, por vezes, precisamos de tirar os óculos, como se nos desnudássemos, ou despojássemos daquilo que consideramos o modo certo de ver as coisas, abrindo-nos à possibilidade que Deus nos dá, ininterruptamente, de ver o mundo à nossa volta com um olhar adequado.
Só não vê, quem não quer. A limpidez do nosso olhar é, por muitos, considerado um dado adquirido. Mas a realidade revela-se, preferencialmente, quando confrontamos o nosso olhar com o olhar dos outros. A reciprocidade desinteressada, mas fruto de um acto de pura doação recíproca, pode fazer-nos experimentar ao longo do tempo o gradual aumento da limpidez nas nossas intenções, pensamentos pronunciados, e actos quotidianos.
Eu leio bastante e, muitas vezes, com o livro nas minhas mãos, notava alguma dificuldade com a nitidez das palavras. Afastava a página, aproximava e, como sou míope, pensei que os óculos não deveriam ter a graduação certa. Tirei-os. Uau. Tudo ficou mais nítido e com maior limpidez. Olhei para os óculos e estavam sujos. Bem sujos.
Neste período, ao sentir a importância da limpidez interior, na experiência dos óculos via um convite de Deus a procurar aprofundar os valores que dão à vida a limpidez que Ele quer. E que essa limpidez permita olhar os outros, e o mundo à nossa volta, do modo que Ele quiser. Pois, não há vontade mais límpida do que a d’Ele, ainda que envolta em Mistério e surpresa.
Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao