Ninguém pretende servir o dinheiro, mas servir-se dele. Porém, não gastamos tanto da nossa saúde, e tempo, para ter dinheiro e poder pagar as nossas contas? Conceitos como o bitcoin surgiram para dar a liberdade financeira à pessoa comum, livre das taxas dos bancos, livre dos impostos dos governos, de modo a que cada pessoa fosse o seu banco e possuísse o controlo total do seu sistema financeiro. Mas todo o sonho de tornar o mundo melhor para todos, ao crescer, acaba por cair na posse de alguns que controlam o sonho de todos.
Ao ver o complexo documentário Cryptopia onde o realizador Torsten Hoffmann fala dos bitcoins, dos blockchains e do futuro da internet, em vez de ficar esclarecido, senti-me profundamente ultrapassado e apercebi-me de que a maior parte da humanidade não está ciente daquilo que está a acontecer. O facto de pagar o pão com um código QR no MBWay (e acabei de usar, talvez, termos que nem todos conhecem), na prática, já não uso dinheiro, mas bits. Não são bitcoins, mas são bits. Isto é, as moedas e as notas do futuro não passa de informação encriptada que assegura pão na mesa.
Se a materialidade do mundo se converte em informação, deixa de ser material. Estaremos a assistir, passivamente, à desmaterialização da nossa vida? Se nos habituamos ao virtual que não é real, como distinguir o que é real no futuro? Os algoritmos conseguem já criar caras únicas e indistintas das verdadeiras. Com a crescente virtualização dos nossos relacionamentos, quem nos garante que lidamos pela net com pessoas reais e não programas? Há uma comunidade enorme e complexa que anda a minar bitcoins e a criar blockchains para que a vida digital nos torne livres, seguros, com recursos financeiros suficientes para uma boa qualidade de vida, e assegurar o elemento fulcral sobre o qual assenta o valor da criptomoeda: a confiança. Mas talvez seja o momento de começarmos a minar BitGods.
«Nem só de pão vive o homem», mas se esse vive cada vez mais da informação que consome, estaremos diante de um cenário em que a frase evangélica adaptada ao nosso tempo diria — nem só de informação vive o homem? Pois, a informação parece, hoje, ser um novo pão nosso de cada dia na vida de muitas pessoas. Mas Deus não é informação, é relação. Por isso, minar BitGods seria minar pedaços de Deus, ou seja, gerar um pouco de Deus em nós, entre nós e à nossa volta através de simples e concretos actos de amor. Isto é, actos em que nos damos a nós mesmos para que o resultado seja aprofundar, fortalecer, sanar e reconstruir os nossos relacionamentos.
Recordo-me um exemplo de BitGod pouco evidente. Um dia, uma senhora bateu à nossa porta para pedir comida, e dinheiro para pagar o antibiótico do seu neto. Demos-lhe comida e dinheiro, mas ficámos a pensar que o melhor gesto seria o de aviar a receita. Inesperadamente, dias mais tarde, a mesma senhora bateu de novo à nossa porta com o mesmo pedido. Dissemos-lhe que já tínhamos dado dinheiro para comprar o medicamento e ela rebateu que o valor não era suficiente. Havíamos falado entre nós que o problema maior não seria o de ter ou não dinheiro, mas o de assegurar que o antibiótico chegaria ao seu neto. Assim, pedimos-lhe para voltar e trazer-nos a receita. Ainda não voltou.
Ao pensar nesta experiência e nos BitGods, creio que se encaixa. Por um lado, houve o pouco de Deus gerado na nossa consciência com o desejo de ir mais a fundo nos problemas das pessoas que nos pedem ajuda, e a ir ao encontro daquilo que, realmente, precisam. E, por outro lado, houve o pouco de Deusgerado nos outros com a maior consciência das verdadeiras razões de estarem a pedir.
Por muito que o nosso desejo profundo fosse outro, todos estamos dependentes do sistema financeiro que afecta as nossas escolhas. E quantas vezes não ajudamos os outros por desconfiarmos da autenticidade daqueles que nos pedem. Por isso, o verdadeiro desafio, para o qual os BitGods são uma resposta, está em desenvolver a confiança na autenticidade do outro. E saber fazer uma pausa para escutar a Vontade de Deus que não cessa de nos inspirar a gerar um pouco da Sua presença sempre que procuramos amar.
As blockchains são protocolos de confiança que visam a descentralização do sistema financeiro em torno dos bitcoins como medida de segurança. Por isso, pergunto-me se não serão as Lovechains os protocolos de autenticidade que visam a centralização do sistema de gratuidade em torno do BitGods como medida de confiança.
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