Ver
Por que razão se haveria de construir uma instalação durante uma década para detectar a reacção dos muões (primos dos electrões) à presença de partículas virtuais que têm um tempo curto de vida, entrando e saindo do plano da existência? Se detectada a anomalia nos muões, é possível que existam novas partículas subatómicas que gerem nova física. O curioso é que os cientistas não vêem estas partículas, mas confiam nos instrumentos que se espera que detectem as anomalias que geram. E se essas partículas não existirem? Significa que milhares de cientistas gastaram milhões de horas e milhares de milhões de dólares para nada. Não será isto “crer para ver”?
O ver para crer na cultura actual ganha novas dimensões muito para além da científica que me parece ser, cada vez menos, a metáfora a usar para as dúvidas de Tomé. A partir do momento em que surgiu a televisão e as pessoas puderam ver, em tempo real, o que está a acontecer do outro lado do mundo, “ver para crer” ganhou uma nova dimensão.
A quantidade de tempo que as pessoas passam em frente a um ecrã a verem vídeos é imensa. De acordo como uma estatística de agosto de 2020, pouco mais de 27 pessoas em 100 vêem mais de 10 horas de vídeos online por semana. Um tempo que corresponde à leitura de 2 livros grossos por semana. Este consumo é um excesso, mas demonstra como somos seres que vivem daquilo que é visual. Demonstra como desejamos ver para nos entreter, conhecer e criar uma visão do mundo. Mas se podemos forjar com a maior das facilidades os conteúdos digitais, o que nos garante que vemos algo real? Nada.
A capacidade que temos de manipular as imagens digitais cresceu exponencialmente. O site https://thispersondoesnotexist.com é capaz de gerar caras de pessoas que não existem com um realismo tal que é difícil acreditar. A partir do momento em que convertemos as imagens capturada em papel químico com uma câmera fotográfica para um sensor CCD que contém píxeis, usando redes contraditórias generativas (generative adversarial network, GAN), podemos manipular as imagens como nunca antes foi possível. Mas o facto de as aparências iludirem é antigo.
Já em 1982, a prestigiada revista National Geopraphic aproximou as pirâmides do Egipto para ficarem melhor na capa. Mas até no Séc. XVI, o retrato de Anne de Cleves feito pelo pintor alemão Hans Holbein, conquistou o coração de Henrique VIII, rei da Inglaterra, mas quando Anne desembarcou, e ele olhou para a pessoa real, foi uma desilusão. Afinal, nem sempre o que se vê nos leva a acreditar naquilo que é real.
Não sei se Tomé queria ver com os olhos para crer, mas a resposta de Jesus foi um convite a “ver com as mãos”, a tocar. Tocar para ver é uma linguagem mais universal do que olhar para ver por incluir todas as pessoas invisuais. O que Jesus proporciona a Tomé não foi uma experiência visual, mas uma experiência sensível. Porém, quando Jesus lhe diz — «toca» — na prática é como se dissesse sente. E, enquanto a visão estimula o nosso cérebro ao nível dos impulsos eléctricos que fazem do momento presente um verdadeiro instante, uma efemeridade, o tocar que desperta a emoção faz-nos viver o presente ao nível químico. Um processo mais lento e que nos permite saborear o presente.
Ver profundamente é deixar-se tocar no coração que não vemos por ser a totalidade do nosso ser. Por isso, não há forma digital que substitua a experiência sensível de quando Deus nos toca o coração.
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