Ver

Crónicas 15 abril 2021  •  Tempo de Leitura: 6
«Ver para crer» — parece ser a lição de tiramos do episódio de Tomé que, se não “visse” o Senhor, não acreditaria. Pessoalmente, penso que Tomé foi esperto. Pois, não “tendo ido à missa”, genuinamente, expressa o seu descontentamento e Jesus, com toda a simplicidade, dá-lhe o presente da Sua presença. Mas este episódio é interpretado como uma motivação a rezar pelos não-crentes por só acreditarem no que vêem, e a reflectir sobre como a ciência mudou o nosso modo de pensar. Parece que só cremos com provas, como na ciência, e, para isso, temos de ver. Mas a ciência acredita em muita coisa sem ver.

Por que razão se haveria de construir uma instalação durante uma década para detectar a reacção dos muões (primos dos electrões) à presença de partículas virtuais que têm um tempo curto de vida, entrando e saindo do plano da existência? Se detectada a anomalia nos muões, é possível que existam novas partículas subatómicas que gerem nova física. O curioso é que os cientistas não vêem estas partículas, mas confiam nos instrumentos que se espera que detectem as anomalias que geram. E se essas partículas não existirem? Significa que milhares de cientistas gastaram milhões de horas e milhares de milhões de dólares para nada. Não será isto “crer para ver”?

O ver para crer na cultura actual ganha novas dimensões muito para além da científica que me parece ser, cada vez menos, a metáfora a usar para as dúvidas de Tomé. A partir do momento em que surgiu a televisão e as pessoas puderam ver, em tempo real, o que está a acontecer do outro lado do mundo, “ver para crer” ganhou uma nova dimensão. 

A quantidade de tempo que as pessoas passam em frente a um ecrã a verem vídeos é imensa. De acordo como uma estatística de agosto de 2020, pouco mais de 27 pessoas em 100 vêem mais de 10 horas de vídeos online por semana. Um tempo que corresponde à leitura de 2 livros grossos por semana. Este consumo é um excesso, mas demonstra como somos seres que vivem daquilo que é visual. Demonstra como desejamos ver para nos entreter, conhecer e criar uma visão do mundo. Mas se podemos forjar com a maior das facilidades os conteúdos digitais, o que nos garante que vemos algo real? Nada.
A capacidade que temos de manipular as imagens digitais cresceu exponencialmente. O site https://thispersondoesnotexist.com é capaz de gerar caras de pessoas que não existem com um realismo tal que é difícil acreditar. A partir do momento em que convertemos as imagens capturada em papel químico com uma câmera fotográfica para um sensor CCD que contém píxeis, usando redes contraditórias generativas (generative adversarial network, GAN), podemos manipular as imagens como nunca antes foi possível. Mas o facto de as aparências iludirem é antigo.
Já em 1982, a prestigiada revista National Geopraphic aproximou as pirâmides do Egipto para ficarem melhor na capa. Mas até no Séc. XVI, o retrato de Anne de Cleves feito pelo pintor alemão Hans Holbein, conquistou o coração de Henrique VIII, rei da Inglaterra, mas quando Anne desembarcou, e ele olhou para a pessoa real, foi uma desilusão. Afinal, nem sempre o que se vê nos leva a acreditar naquilo que é real.


NationalGeographic1982
 
 
O poder da visão para captar a nossa atenção é um dos aspectos mais importantes das estratégias que constroem a infra-estruturas digitais que asseguram a possibilidade de visualizarmos mais de 10h por semana de conteúdos digitais em formato vídeo. Por isso, não é a ciência que deveria ser a metáfora melhor para expressar as dúvidas de Tomé, mas antes o quanto dependemos daquilo que vemos para crermos. Mas há quem não veja por ser cego. E esses? Como podem “ver para crer”?


Não sei se Tomé queria ver com os olhos para crer, mas a resposta de Jesus foi um convite a “ver com as mãos”, a tocar. Tocar para ver é uma linguagem mais universal do que olhar para ver por incluir todas as pessoas invisuais. O que Jesus proporciona a Tomé não foi uma experiência visual, mas uma experiência sensível. Porém, quando Jesus lhe diz — «toca» — na prática é como se dissesse sente. E, enquanto a visão estimula o nosso cérebro ao nível dos impulsos eléctricos que fazem do momento presente um verdadeiro instante, uma efemeridade, o tocar que desperta a emoção faz-nos viver o presente ao nível químico. Um processo mais lento e que nos permite saborear o presente.

Ver profundamente é deixar-se tocar no coração que não vemos por ser a totalidade do nosso ser. Por isso, não há forma digital que substitua a experiência sensível de quando Deus nos toca o coração. 
 
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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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