Será que a nossa cabeça é pequena para caber tudo o que o Senhor nos ensina? Ou talvez não seja uma questão de espaço, mas de abertura. Quando nos abrimos ao que Deus nos quer revelar através dos acontecimentos e dos relacionamentos, na cabeça caberá tudo o que Ele quiser ensinar-nos. E uma das coisas que Deus nos ensina, e que convinha caber na cabeça, é evitar os juízos.
Imagina um jovem dizer a um amigo que ele tem uma “fé de supermercado”. O argumento é o de quem vive uma fé à medida daquilo que nos dá jeito. A intenção é a de estimular o aprofundamento da fé em vez de estar a “comprá-la no supermercado”, mas o modo “justo”? Não estará a fazer um juízo?
Quando um juiz pronuncia uma sentença, houve um longo período de conhecimento detalhado e profundo da história subjacente à necessidade de fazer um juízo, mas não me parece ser o que acontece nestes comentários que podemos fazer uns aos outros. Somos mais apressados a fazer juízos que a conhecer as histórias. Nem relativamente a nós próprios temos a capacidade de ajuizar como deve ser.
Para algumas pessoas parece fácil ajuizar o que os outros dizem ou fazem quando tomam opções diferentes das nossas. Se deixou de ser cristão e passou a ateu, não deve estar bom da cabeça. Se passou a vegetariano quando antes almoçávamos juntos um belíssimo bitoque, não deve estar bom da cabeça. Se tem andado silencioso ultimamente nas redes sociais, sem interagir, não deve estar bom da cabeça. Quando alguém muda, a tentação de ajuizar sobre a sua mudança sem conhecer as razões a fundo é enorme e pode danificar os relacionamentos. Quando alguém me faz um juízo com o qual não me identifico minimimamente, essa pessoa arrisca-se a que eu pense que não deve estar boa da cabeça. Tudo isto está relacionado com os actos intelectivos. E o juízo é o último passo de um acto intelectivo.
Num acto intelectivo, o primeiro passo consiste em confrontar “algo” que queremos ajuizar com a nossa experiência.
O segundo passo será compreender o resultado desse confronto.
O terceiro passo implicar criticar a compreensão a que chegámos.
E só no fim podemos dar o quarto passo e ajuizar sobre aquele “algo”.
Recapitulando:
- Confrontar;
- Compreender;
- Criticar;
- Ajuizar.
Se quisermos aplicar o acto intelectivo aos passos que acabei de assinalar, o que teríamos de fazer?
1º passo) Observar e confrontar o que é um acto intelectivo com a nossa experiência.
2º passo) Compreender o resultado desse confronto.
3º passo) Criticar se a compreensão que fizemos desse acto é válida ou não.
4º passo) E, por fim, ajuizar sobre a validade da crítica à compreensão do confronto da definição de acerto intelectivo com a experiência que fazemos desse.
Aplicámos o acto intelectivo para ajuizar sobre o mesmo. É um processo forte e invariante que aprendi do filósofo jesuíta Bernard Lonergan. Foi isto que fez o jovem ao ajuizar o seu amigo dizendo-lhe — «tens uma fé de supermercado»?
Quando uma pessoa passa da observação ao juízo, por definição, padece de arrogância intelectual. E se alguém nos fizer esse reparo, custa ouvir e a tendência será a de rebater ripostando a arrogância com um — «tu é que és arrogante!» — mas quem dá o primeiro passo nesse deslize deve assumir a responsabilidade. Cuidado com os juízos porque somos, por natureza, muito incompetentes nessa tarefa. Aliás, há muito que o Evangelho nos orientar no aspecto dos juízos quando está escrito,
«Não julgueis, para não serdes julgados; pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos. Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista? Como ousas dizer ao teu irmão: 'Deixa-me tirar o argueiro da tua vista', tendo tu uma trave na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e, então, verás melhor para tirar o argueiro da vista do teu irmão.» (Mt 7, 1-5)
Poderão pensar que este tipo de comentários como a “fé de supermercado” entre amigos não tem importância. E talvez não tenha, mas mói e não constrói. Logo, por que razão fazê-lo?
A conversão que a vida profunda em Deus nos convida é a de investir cada vez mais e melhor no passo da compreensão. Ao querermos compreender o estilo de vida do outro, aquilo que disse ou fez, o que veste, o que compra ou oferece, somos naturalmente levados a questionar e silenciar.
A arte da pergunta é o modo de entrar na pele do outro para construirmos uma unidade ímpar com ele. A arte do silêncio é o modo de abrir espaço no nosso relacionamento e desenvolver em nós a predisposição de aceitar a diversidade do outro ainda que não se compreenda, em vez de ajuizar sem compreensão alguma das razões do outro ser como é.
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