Distracções
Lembro-me de uma vez estar à procura dos meus óculos. Estava a começar a ficar desesperado até que a minha mãe me diz — «Miguel, os óculos que procuras estão na tua cara.» — Rimo-nos, claro, mas hoje fico a pensar na razão de alguém procurar fora o que está em si. Será pelo hábito que deixou de sentir a presença das coisas exteriores a si mesmo, como uns óculos? O mais comum é considerarmos que situações como esta são distracções. De facto, muitas vezes o que procuramos está à nossa frente e não vemos.
Recordo-me de outra situação. O nosso grupo de amigos havia-se juntado em casa de um de nós, o João, e partilhávamos as histórias das nossas distracções. O João contou que uma vez estava de tal forma distraído que deixou as chaves no frigorífico. Todos nos desatámos a rir porque, conhecendo-o, até conseguíamos imaginar uma situação daquele género. Entretanto, chegou a hora de voltarmos à escola para as aulas das tarde. Mochilas às costas e o João pergunta, genuinamente, — «onde estão as minhas chaves?» — na brincadeira dissemos para ver no frigorífico. E lá estavam! Muitas vezes o que procuramos está nos lugares mais esquisitos como fruto das nossas distracções.
A vida faz-se de procuras, e cada procura conduz-nos por sendas inesperadas. Ultimamente, sinto que procuramos menos, ou somos menos curiosos, porque dá trabalho. Esperamos encontrar tudo ao minuto com um simples deslizar do dedo. Aliás, deixou de ser já ao minuto que exigimos as respostas ao que procuramos. Agora, é uma questão de meros segundos. O preço de termos respostas de acordo com o que esperávamos com uma pesquisa simples no Google, será diminuirmos a sede da procura sem nos darmos conta disso. Pela minha experiência, algumas distracções podem transformar-se em histórias a recordar quando ligadas à dinâmica de uma procura. Mas nem todas as pessoas olham para os distraídos com bons olhos.
Por que razão admiramos uma pessoa concentrada e desprezamos uma que se nota estar distraída? Por que razão a primeira faz alguma coisa com valor na vida e a segunda consideramos que navega sem rumo? Se nos distrairmos em momentos de concentração, podemos sofrer. Mas se nos concentramos demasiado em momentos de distracção, sofremos, também. As distracções enquadradas no ritmo diário podem ser a lufada de ar fresco que liberta a mente para voos mais altos. Voos pela imaginação onde se encontram as soluções mais criativas para os problemas que mais atormentam.
As distracções associadas a momentos do vaguear da mente, por exemplo, enquanto caminhamos, podem tornar-se num momento feliz que nos relaxa. O curioso está na potencialidade que esse relaxamento tem de restaurar a nossa atenção quando essa caminhada se faz pela natureza, aproximando o nosso coração distraído da novidade que o fresco da brisa oferece quando notamos a sua presença a acariciar a nossa face.
Não é possível viver de distracções porque essas são como a pitada de sal de dá sabor à sopa. Sal a mais, estraga tudo. Mas viver sem distracções torna a vida rígida, endurecendo, também, o coração. Basta pensar que as distracções de Einstein eram uma das suas grandes fontes de inspiração. Numa carta ao matemático Oswald Veblen, Einstein escrevia que — «a natureza esconde os seus segredos porque é sublime, não por ser traiçoeira.»Nele, as distracções eram a porta de entrada dentro de si para acolher o sublime fora de si, e deixar-se banhar pelo mar de pensamentos até que um se sobressaia.
As distracções pode ser fatais. Olhar por um segundo para o lado contrário do perigo. Um forno ligado. Um olhar imerso no ecrã com o próximo passo prestes a entrar num buraco. Uma palavra dita sobre alguém que, sem nos apercebermos, estava atrás de nós. O que fazer?
As distracções que nos fazem sofrer são um sinal de que não podemos controlar tudo na nossa vida. Por vezes, temos de confiar que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e acolher o momento presente. Quem sofre com as distracções devia aperceber-se de que essas fazem parte daquilo que significa ser humano e convinha evitar juízos precipitados sofre si mesmo e sobre os outros.
Talvez gostássemos de ser menos distraídos porque magoamos sem intenção. Talvez gostássemos de ser mais distraídos, como Einstein, treinando e reconhecendo o valor do vaguear da mente. Mas o melhor será acolher o quão muito ou pouco distraímos somos, em vez de pensarmos demasiado no quanto gostaríamos ser. Quem sabe se a qualidade das nossas distracções não se torna uma fonte que mantém puro o nosso olhar sobre as coisas, e nos mantém abertos à surpresa da incerteza de cada dia.
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