Lua

Crónicas 22 julho 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Um satélite visto da Terra, um desafio para chegarmos lá, e uma febre actual como foi a do ouro. Sejam países como a China, a Índia, Israel ou os Estados Unidos, sejam privados como Elon Musk da Tesla, ou Jeff Bezos da Amazon, todos andam numa corrida para que os humanos voltem a pisar a Lua. De onde vem este fascínio por gastar uma enorme quantidade de recursos para viver num lugar tão inóspito?


«Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.» — com três incisivas ideias, Fernando Pessoa capta na perfeição a razão subjacente a todos os grandes feitos do ser humano. A vontade de Deus só é possível concretizar se o ser humano for capaz de sonhar. Passados pouco mais do que 50 anos desde que pisámos a Lua, voltamos a esse sonho. O que de novo nos poderá trazer pensar nesse sonho?


Quando Bill Anders tirou a célebre foto da Terra a partir da perspectiva da Lua, deu-nos a possibilidade de percebermos como o nosso planeta está suspenso no vazio do espaço, levando-nos a sentir a pequenez e a fragilidade da casa comum que nos abriga do frio cósmico. A partir desse momento, aumenta a sensibilidade humana para a unidade que todos deveríamos experimentar na diversidade de raças, religiões e culturas. Quando penso qual seria a vontade de Deus ao inspirar o ser humano em sonhos a ir à Lua, penso que, talvez, Deus quisesse mostrar-nos como somos pequenos e como devíamos estar mais unidos, e talvez mais alguma coisa.


A Lua não tem atmosfera como a Terra, pelo que as suas crateras demonstram estar sujeita a impactos de meteoritos sem forma de se proteger. São cicatrizes. A Terra é um planeta com um tamanho maior do que a Lua, mas não temos tantas cicatrizes porque a nossa fina atmosfera nos protege. Sim, a mesma atmosfera que garante o calor da nossa casa comum e que o nosso estilo de vida pode alterar. Sem essa nada seríamos, mas quantos pensam na atmosfera quando carregam no acelerador? Quase ninguém pensa na pele terrestre que nos protege, ou reconhece o seu valor, ou tão menos a conhece. Ao contemplar as cicatrizes da Lua, talvez Deus nos esteja a convidar a rever o valor que damos à nossa atmosfera.


Quando a Lua se ausenta do céu, as noites são mais escuras. A Lua não emite luz como o Sol, mas reflecte-a. Ao pensar nesta característica tão banal e apreciada por quem precisa de caminhar durante a noite, penso na luz de Deus. A luz está sempre presente. E apenas quando a Lua está do lado da nossa noite conseguimos perceber isso pelo reflexo que essa faz da luz. É como os valores. A luz de Deus está sempre presente, mas se não houver valores onde essa possa reflectir, não nos conseguimos orientar no caminho.


No seu discurso motivacional da ida à Lua, o presidente americano John F. Kennedy dizia — «Nós escolhemos ir à Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque são fáceis, mas porque são difíceis, porque o objectivo servirá para organizar e medir o melhor das nossas energias e competências, porque esse desafio é um daqueles que estamos dispostos a aceitar, um que não estamos dispostos a adiar, e um daqueles que tencionamos ganhar, e os outros, também.» Fomos à Lua porque era difícil. Por vezes temos a tendência para recusar o que é difícil por nos sentirmos incapazes de ultrapassar os obstáculos, mas a inspiração de termos pisado a Lua é clara: os grandes feitos implicam não recusar o caminho difícil. Mas não acham curioso como Kennedy não exclui as “outras coisas”?


Nas outras coisas imagino os críticos que argumentam pela inutilidade do sonho e pelo desperdício de recursos para ir à Lua quando tantas coisas estão por resolver aqui na Terra. De certa forma dou-lhes razão. Que sentido tem ir ter com a Lua em vez de ir ter com o pobre? Não é o pobre um lugar inóspito e um caminho difícil? 


Parece que a Lua poderá conter a resposta para muitos mistérios sobre as nossas origens que o pobre não contém. Mas eu questiono essa forma de pensar. O pobre, o desiludido, o triste, o que chora e grita a dor do sofrimento que vive, é uma Lua para nós. Digno de todo o nosso engenho e criatividade. Ao encontrar o caminho para chegar ao pobre, encontraremos o caminho para Deus, a nossa origem. Pois, se há lugar onde certamente Ele habita, e mais se faz presente, é no coração daquele que sofre.

 

[Imagem:Charles Le Morvan: Systematic Photographic Map of the Moon, Decreasing Phases, 1899–1909.]
 

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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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