Alimengada
Se “pegada” é a marca que deixamos com o pé ao fazer caminho, “alimengada” é a palavra que traduz a marca que deixamos com o modo como comemos. Segundo um artigo que li na Scientific American, 30 a 40% dos alimentos destinados a saciar a fome das pessoas é desperdiçado. É como se transportássemos seis sacos de compras do mês e deitássemos dois para o lixo antes de entrar em casa. Faz sentido?
Estudos mostram que a comida desperdiçada representa cerca de 8% das emissões de gases com efeito de estufa. Se reduzíssemos o desperdício de comida estaríamos a alterar menos a face do planeta. Pouparíamos energia, água, os solos conseguiriam recuperar melhor depois de uma colheita, e aprenderíamos a respeitar os recursos que temos, não extraindo mais do que aquilo que o planeta oferece. Não faz sentido desperdiçar comida quando 800 milhões de pessoas por dia passam fome neste planeta. E se estes valores não te dão a volta ao estômago basta pensar que poderias ser um desses que passam fome. Saber colocar-se na pele do outro é desenvolver a capacidade para a empatia. Mas não restam dúvidas que a empatia é apenas um dos elementos da nossa “alimengada” ecológica.
Se diminuir a “alimengada” ecológica implica menos desperdício de comida e, consequentemente, representa um corte substancial nas emissões de gases com efeito de estufa de cada pessoa, o que nos impede? Se soubermos ser moderados no que comemos e aumentarmos a percentagem de alimentos vegetais na nossa dieta, não só estaremos a optar por uma alimentação mais saudável como diminuímos as emissões ligadas à produção de alimentos que é superior nos animais em relação aos vegetais. De acordo com o artigo da Scientific American, as emissões de um bife podem ser 100x superiores às de 1kg de tomates. Depois, sabendo que a diversidade na alimentação é uma opção mais saudável, também induzimos, como consumidores, a que os produtores diversifiquem mais a sua produção, iniciando um jogo criativo entre descobrir os melhores alimentos em cada época e o que podemos fazer à refeição. Aliás, não é por acaso que surgiu a “Alimengada” (Foodprint) Zero — https://www.zerofoodprint.org
Os valores daqueles que procuram usar o despertar da consciência para uma alimentação mais ecológica centram-se na crença de que uma economia de alimentação renovável tem a capacidade de dar um contributo significativo para restaurar os ritmos climáticos.
O primeiro valor é o da regeneração. Rachel Carson na sua magna-obra “Primavera Silenciosa” (não traduzida para português) foi a primeira a chamar a atenção do grande público para o perigo dos pesticidas, mas não é só aquilo que comemos que pode conter produtos que fazem mal à nossa saúde. De alguma forma, a saúde dos solos é a nossa saúde também. Por isso, desenvolver estratégias de regeneração dos solos restaura o nosso sistema alimentar e o modo de armazenar carbono, baixando os níveis presentes na atmosfera que causam o aquecimento global.
O segundo valor envolve uma acção colectiva em prol de um movimento na direcção do “bom alimento”. Não só pelo que sabe bem, mas por uma agricultura mais sustentável que minimiza, também, o trajecto dos alimentos até chegarem às nossas mesas. Um exemplo disso são os tomates que o irmão do meu sogro planta na sua horta e que está sempre a oferecer-nos. Uma dentada naquele suculento tomate cria uma memória tal do sabor que tudo o resto que se vende em qualquer super- ou hipermercado parece artificial. Criar este movimento implica uma rede de relações de proximidade entre as pessoas, uma maior comunhão de bens e trazer os ares do campo para a cidade. Não é fácil.
O terceiro valor é o da justiça. São os mais pobres que sofrem com a elevada “alimengada” dos que possuem mais recursos. Podemos sentir poder fazer muito pouco, mas reduzir o consumo de alimentos apenas ao necessário dá-nos uma identidade diferente e uma experiência que estimula um maior respeito pelo alimento a que temos acesso e que tantos outros desejariam ter.
Por fim, o quarto valor da “Alimengada Zero” é a prosperidade. Muitos pensam que desperdiçar menos comida não é economicamente viável por queremos sempre ter tudo a toda a hora, mas esse não é um estilo de vida sóbrio ou próspero. A prosperidade não está em “ter” tudo, mas em “ser” tudo. Há quem “tenha” saúde e há quem “seja“ saudável. O primeiro satisfaz uma necessidade, o segundo cria uma cultura. E o que cria cultura é próspero.
Reorientar a nossa “alimengada ecológica” não implica voltarmo-nos para o vegetarianismo, mas antes numa trajectória de vida: equilibrada fisicamente → pelas escolhas feitas mentalmente → quando orientadas espiritualmente → para valores que contemplam o todo, sem perder de vista a parte.
O segredo de uma “alimengada zero” está em pegar naqueles dois sacos desperdiçados e oferecê-los a quem precisa. Pois, há mais alegria em dar do que em consumir.
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