Mundivivência

Crónicas 25 novembro 2021  •  Tempo de Leitura: 6
Era véspera da apresentação do livro de Transmissão de Calor que publiquei com a minha esposa. Acordei a pensar no que poderia dizer e pensei em aproximar a ciência à vida. Pois, nesta disciplina ligada à energia, estudam-se, essencialmente, três mecanismos sobre o modo como a energia se transmite: condução, convecção e radiação. Partilho-vos o que falei no dia da apresentação porque tenho-me dado conta de que a natureza pode ensinar-nos mais do que poderíamos pensar.

No mecanismo da condução a parte molecular que tem mais energia dá sempre à que tem menos, logo, é um mecanismo solidário.
No mecanismo da convecção é preciso haver um fluido que escoe para que a energia possa ser convectada, que significa transportada, mas se não houver interacção com uma superfície ou interface, e uma diferença entre a energia da superfície e a do fluido, não se troca energia. É preciso haver uma interface e diversidade. É preciso haver um relacionamento e daí que este seja um mecanismo relacional.
Na radiação acontece algo curioso. Se nos anteriores mecanismos quem tem mais energia dá a quem tem menos, na radiação, todos dão energia a todos… desde que se vejam. Muito ao modo como construímos as nossas comunidades. Por isso, diria que a radiação transmite calor por um mecanismo comunitário de partilha recíproca de ondas electromagnéticas, como as que recebemos do sol ou de uma fonte de luz, ou até da parede de um edifício ao final da tarde.

Mecanismos solidários, relacionais e comunitários. Se a natureza é assim, por que razão nos custa tanto aprender dela estes valores?

A pandemia mostrou-nos a necessidade de sermos mais solidários, do quando dependemos dos nossos relacionamentos, e de quanta vida se gera quando estamos em comunidade. Foi esta a intenção subtil do livro que escrevemos: estimular um estudo que se torne vida.
Um estimulo a procurarmos beber da sabedoria escondida nestes mecanismos físicos e a criar humanidade nos nossos actos inspirados pelo carácter ou natureza profunda que expressam.
Será pensar em mecanismos de transmissão de calor deste modo filosofia a mais? Talvez. E porque não? Existem momentos da nossa vida em que o pragmatismo da técnica é insuficiente para explicar a experiência profunda que fazemos do mundo físico à nossa volta. Chegou o tempo de construir pontes entre margens distantes.
Terminei aqui o que partilhei na apresentação do livro, mas fiquei a pensar sobre a referência às pontes. A que tipo de pontes estaria a referir-me? Talvez em pontes que ligam a compreensão do mundo à vida que o dinamiza. Pontes que se tornem mundividência. Mas não uma experiência do mundo que seja superficial. Antes, uma experiência profunda imersa na paisagem do universo que lhe dá cor e vivacidade. Um pouco como expressam as palavras do eco-teólogo Thomas Berry, sacerdote Passionista, que no seu livro ”Evening thoughts” diz —
«O universo é o único texto sem um contexto. Cada modo particular de ser é referente ao universo, e o seu significado estabelece-se apenas quando enquadrado neste cenário. Esta é a razão desta história do universo ser tão importante, e em especial a do planeta Terra. Através da compreensão que fazemos desta história, o nosso papel dentro dessa revela-se. Nessa revelação reside o nosso caminho para o futuro.»
A mundividência revela, pouco a pouco, por que razão estamos onde estamos e nos tempo em que existimos. Mas nem todos poderão sentir o mesmo.

Para muitos, a mundividência possui um semblante soturno porque vivem muitas situações sem esperança. Como será alguma vez possível verem na história do universo qualquer significado que seja? Como pode a sua vida sofrida ter qualquer papel ou futuro na imensidão do cosmos? São as incertezas. Mas o curioso é que sem essas incertezas, o mundo não teria espaço para experimentar a liberdade de criar e permitir ligações novas, impensadas.

Por isso, talvez a compreensão de fazia da vida através dos mecanismos de transmissão de calor proviesse daquele texto que é o universo ao qual a mundividência dava contexto, ligando o concreto ao abstracto, o certo ao incerto, a dor ao amor.
O facto de termos mundividências diferentes justifica o quanto temos para dar. E não importa, como na radiação, se temos muito ou pouco para dar, porque todos beneficiamos quando damos o que vivemos reciprocamente. É por essa razão que me toca um dos pensamentos mais repetidos por Thomas Berry nas suas obras — «o universo é uma comunhão de sujeitos, não uma colecção de objectos.»


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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