Livro

Crónicas 16 dezembro 2021  •  Tempo de Leitura: 6
Os miúdos não querem mais brinquedos de plástico no Natal. Querem algo mais ecológico. Então, oferece um livro. Muitas pessoas pelo mundo inteiro foram marcadas por livros que leram quando eram crianças, ou mesmo na idade juvenil. Charles Darwin, por exemplo, tinha consigo na viagem no Beagle onde recolheu os elementos que dariam origem à sua teoria da evolução das espécies, um livro escrito por Alexander Von Humboldt — “Narrativa Pessoal da Viagem às Regiões Equinociais do Novo Continente” que Darwin dizia saber quase de cor. O fascínio do livro de Humboldt estava na captura da imaginação do leitor através de palavras evocativas que o Edinburgh Review escreveu levar-nos a «tomar parte dos seus perigos, partilhando os seus medos, o seu sucesso e o seu desapontamento.» Humboldt inspirou Darwin porque os livros contêm palavras vivas que vivificam. 


Antigamente, os mineiros usavam canários para avaliar se o ar se mantinha respirável ou — pela morte do canário — se apresentava elevados níveis de dióxido de carbono que poderiam levar à morte dos mineiros por asfixia. O escritor Kurt Vonnegut considerava os livros como os canários da mente que alertavam para a presença de perigos, independentemente da sua natureza. Em “Reader, Come Home”, Maryanne Wolf esclarece que os seres humanos não nasceram para ler. Por isso,
 
«o longo desenvolvimento do processo de aprender a ler mudou muito e profundamente a própria estrutura das conexões que reorganizam os circuitos cerebrais, transformando a natureza do pensamento humano. O que lemos, como lemos, e por que razão lemos, altera o modo como pensamos. Mudanças que agora se tornaram contínuas e a um passo mais acelerado.»
 
Aliás, Wolf chega mesmo ao ponto de afirmar que
 
«o futuro da espécie humana pode bem estar sustentado pelas formas mais elevadas de inteligência colectiva, compaixão, e sabedoria através do nutrir e proteger da dimensão contemplativa do cérebro que lê.»
 
Um livro é mais do que um amontoado de páginas de papel com letras misturadas em forma de palavras, mas consiste num modo físico da cultura alterar-nos biologicamente.

 
Em “Sobre a Leitura”, o escritor francês Marcel Proust partilha que o “belos livros” ajudar-nos-ão a compreender o papel, simultaneamente essencial e limitado, desses na vida espiritual. Uma vida pautada pela profundidade e plenitude. Ou, com palavras afáveis, diz Proust — 
 
«Sentimos perfeitamente que a nossa sabedoria começa onde a do autor acaba, e quereríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos. E estes desejos, ele só pode despertá-los em nós fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço da sua arte lhe permitiu chegar.»

Num época de entretenimento como a nossa, as crianças têm acesso a 24 sobre 24 horas de cores vivas e bonecos a mexer, enquanto o seu olhar se mantiver colado a um ecrã. Os desejos despertados pelos vídeos são consumistas a almejar mais bonecos de plástico, que não transformam as suas vidas ou as impelem a desejar as coisas grandes e profundas. Mas o livro não alimenta somente os desejos.
Andrew Piper, professor de Linguística da Universidade de McGill, diz que «a leitura não é somente um escape, mas também disciplina-nos, molda-nos naquilo que somos. (…) Estamos a tornar-nos as ferramentas das nossas máquinas e não o contrário. Neste sentido, estamos a tornar-nos cada vez menos letrados.» Por isso, o livro expande tanto o nosso horizonte através da imaginação, estimulando a nossa criatividade, como é inclusivo, e nos leva a entrar no íntimo de nós mesmos. Afastar as crianças desta experiência é influir sobre a vida profunda e orante que poderiam ter. Piper diz que ler livro «é um acto vocacional para além de nós mesmos, mas é também um símbolo de reciprocidade: ao segurar um livro com as mãos, nós somos segurados. De cada vez que seguramos um livro, hoje, nós estamos a reencenar a ligação inicial entre leitura e oração.»


As crianças são exigentes naquilo que querem para o Natal por ser cada vez mais fácil (e barato) oferecer o que desejam. Lembro-me de uma vez terem oferecido um daqueles carros barulhentos ao meu filho quando era bem pequeno e não sabia ler, e de como a música azucrinava os nossos ouvidos e tornava-nos incapazes de manter a nossa atenção nas conversas. Com os livros é bem diferente.


Os livros, como as mãos, seguram a nossa atenção. E desenvolver o gosto pela leitura oferecendo um livro em vez de brinquedos, uma vez que existem livros para todas as idades, quem sabe se um dia não emerge o desejo de escrever um livro. Todos se alegram pelo primeiro passo de um bebé, mas uma alegria maior deveria provir da primeira palavra escrita à mão por uma criança. Pois, é o sinal de originalidade proveniente da capacidade para reflectir, compreender quem somos e o mundo onde estamos.


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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