Introspectiva
Uma perspectiva oferece um horizonte futuro sobre o qual podemos sonhar e projectar. Uma retrospectiva oferece um exame de consciência em relação ao passado, reflectindo sobre as nossas escolhas e a história que essas construíram. Uma introspectiva é um olhar dentro de nós para compreender o que nos é íntimo e que sentido tem a nossa vida a partir de uma visão interior.
Viktor Frankl dizia que o vácuo existencial manifestava-se num estado de aborrecimento. O tédio é muitas vezes causa de maiores problemas do que a angústia. Por essa razão, a vida digital acabou por salvar-nos do tédio ao oferecer a possibilidade de obtermos gratificações instantâneas sem grande esforço. Mas Gayatri Devi dizia que «o tédio não é um problema a resolver. É o último privilégio da mente livre.» Pois, os momentos de tédio são o sinal claro de disponibilidade para dar tempo ao horizonte de sentido de nasce no interior da mente através dos pensamentos sobre o que vivemos, não vivemos ou desejaríamos viver.
Quando um ano está prestes a terminar e outro começa, o mais habitual é fazermos uma retrospectiva do ano que passou.E muitas pessoas pensam que numa retrospectiva olhamos para trás, mas uma tribo da América do Sul, curiosamente, olha em frente. Na linguagem dos Aymara, a palavra para passado é mayra que também significa “olhos”, ou seja, refere-se ao que está à nossa frente e podemos ver. Para futuro dizem qhipa que significa “trás” porque desconhecemos o que não aconteceu ainda e, por isso, não vemos. A introspectiva parece mais universal por ser evidente que nos convida a olhar para dentro, mas talvez olhemos melhor para dentro quando nos voltamos para fora de nós próprios na busca do sentido para a nossa vida.
Li recentemente o livro de Viktor Frankl “O homem em busca de um sentido”. Quando pediram a Frankl que resumisse numa frase qual o sentido que encontrou para a sua vida, ele escreveu a resposta num papel e pediu aos alunos que adivinhassem. Depois de um momento de silêncio um dos seus alunos diz — «o sentido da sua vida é ajudar os outros a encontrarem o sentido das suas.» — e isso era, textualmente, o que Frankl havia escrito. Ou seja, o sentido da vida, único em cada pessoa, encontra-se no quanto damos de nós aos outros para que encontrem, também, um sentido. Quer isso dizer que uma introspectiva se manifesta numa extrospectiva?
Os tempos difíceis que vivemos ajudaram-nos a entender e valorizar a nossa finitude e de como a nossa existência sem finalidade pode ser um tormento. Sofremos, mas quando há um sentido para o sofrimento, a vida dignifica-se apesar das dores indesejadas. E só se encontra um sentido para o sofrimento quando nos colocamos num atitude introspectiva. Por exemplo, depois de saber que sofria de uma doença rara de cancro nos ossos, Chiara Badano precisou de 25 minutos a sós com os seus pensamentos para aceitar a sua condição como a Vontade de Deus para si. Hoje é beata e inspira a vida de muitos jovens.
Uma das motivações para uma introspectiva anual é pensar em tudo aquilo que recebemos de bom e aproveitarmos para exercer a gratidão. A prática da gratidão é um acto sábio que mantém a nossa saúde mental. Robert Emmons estuda a gratidão há mais de 30 anos e: nos benefícios físicos inclui sistemas imunitários fortalecidos, menos dores físicas, menor pressão sanguínea e dormir melhor; nos benefícios psicológicos inclui emoções mais positivas, pessoas que estão mais alerta e despertas, mais alegres, optimistas e felizes; e nos benefícios sociais inclui a maior capacidade de ajuda, generosidade, compaixão, perdão, empatia, isolando-se menos e sentindo-se menos solitário. A prática da gratidão introspectiva pode começar com um pequeno diário em que cada dia termina com “estou grato por…”.
A introspectiva pode assustar-nos um pouco porque ao olharmos para dentro de nós podemos não gostar do que encontramos e isso leva-nos a um estado de depressão contrário ao suposto. Nesse sentido, somos tentados a pensar que acolheremos a introspectiva quando tivermos tempo para isso, mas o tempo passa, voa e, para muitos de nós, ainda ontem o ano havia começado.
Uma cultura introspectiva não pretende que nos voltemos sistematicamente para nós próprios, mas que sejamos mais conscientes do momento presente que vivemos e despertemos para a vida profunda todos os dias. Com o renovar que cada ano novo representa aproveitemos para desenvolver a capacidade da introspeção, de modo a encontrarmos o sentido da vida que nos move e as razões de estarmos gratos para criarmos esse hábito. Pode ser que nesse percurso nos tornemos mais sensíveis à dimensão espiritual da vida da qual brotam os actos mais criativos que renovam o mundo.
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