Pós-verdade

Crónicas 6 janeiro 2022  •  Tempo de Leitura: 6
Será a Igreja sinodal um caminho para a verdade ou para a pós-verdade? A verdade é uma procura incessante do ser humano. Mas como podemos saber que algo é verdadeiro? É porque nos dizem ser a verdade? É porque os nossos olhos viram? É por termos sido nós, ou outros em quem confiamos que chegaram à verdade? Sem entrar em relativismo, creio que ninguém sabe bem o que é a verdade. Por isso, procurar a verdade é algo que fazemos juntos analisando factos e interpretando-os, mas algo começou a nascer e cresceu exponencialmente: a pós-verdade.


A pós-verdade assenta na ideia de que o nosso sentimento em relação a alguma coisa conta mais do que os factos que existem sobre isso. É como se a intuição falasse mais sobre a realidade do que os factos. Como diz Lee McIntyre no seu pequeno livro ”Post-Truth” — «quando as crenças de uma pessoa são ameaçadas por um ‘facto inconveniente’, por vezes, é preferível desafiar o facto.» Por isso muitas pessoas desconfiam da experiência religiosa e confiam mais no conhecimento científico, até que esse seja questionado.


Em rigor, uma teoria científica nunca poderá ser provada. Pois, toda a “teoria” é isso mesmo, uma teoria. E não pretende ser sinónimo da verdade, mas a melhor compreensão e explicação que damos para a realidade que descrevemos. E como estamos sempre a adquirir dados científicos novos, podemos sempre encontrar um dado que coloque uma teoria em causa. Em termos teológicos é o que expressa a creatio continua, ou seja, a percepção de que Deus está sempre a criar. Basta pensar que antes de uma estrela explodir pela primeira vez no universo, e produzir átomos de carbono no processo, a vida seria uma impossibilidade. E como a história do universo continua, havendo condições para que algo exista pela primeira vez pode desafiar todas as teorias assentes numa compreensão da realidade universal anterior a esse facto inédito. Mas não é a criação contínua que desafia a verdade, mas a pós-verdade.


Num memorando escrito por um executivo da indústria tabaqueira em 1969 dizia que «a dúvida é o nosso produto, uma vez ser o melhor modo de competir com o ‘corpo de factos’ que existe na cabeça do público em geral». Ou seja, apesar dos factos apontarem o tabaco como a causa dos câncro nos pulmões, as indústrias tabaqueiras pagavam a alguns grupos de investigação, ou criavam os seus próprios grupos, para oferecer um contra-ponto e incutir a dúvida nas pessoas. Apesar de parecer que esta estratégia que domina ainda hoje (e de que maneira!) ser um atentado à verdade, na realidade, é-o, de facto, mas indirectamente. Pois, o contrário de verdade não é a dúvida, mas a certeza, como diz a escritora Anne Lammott em ”Plan B: Further thoughts on faith». E explica, — «A certeza falha no alvo. A fé inclui notar na confusão, no vazio e no desconforto, e deixar que assim seja até voltar a luz.»

A dúvida ajuda-nos a não nos conformarmos com o que pensamos saber, e impulsiona-nos a aprofundar o que desconhecemos. Por isso, ao desvalorizar a dúvida como ferramenta na procura da verdade, e usá-la como produto para semear falsas certezas, o mundo entra na pós-verdade onde conta mais o sentimento do que a razão, desequilibrando-os e colocando em questão a própria noção e sentido de verdade. Tudo conta desde que vá ao encontro do aperto que sentimos no estômago. Quando as pessoas preocupam-se mais com o lado em que estão, do que com o lado em que os factos as colocam, acabam por ser subordinadas às opiniões que as mantém confortáveis na sua bolha.
 
«As pessoas prevêem o futuro apenas quando coincide com os seus desejos e os factos óbvios mais grosseiros podem ser ignorados quando não são desejados.» (George Orwell)

E se algo em que cremos é partilhado com os outros, há quem diga que os erros mais incríveis podem ser racionalizados. Logo, em que podemos acreditar, realmente, neste mundo? Do mesmo modo que os cientistas não receiam ver as suas teorias questionadas, também os crentes não deveriam recear questionar e ver questionadas as suas crenças. E embora possamos estar de acordo com uma opinião ou ideia que está errada, a relacionalidade e o acto de confrontarmos juntos aquilo que pensamos sobre o que acreditamos será sempre a melhor forma de ir ao encontro da verdade, saindo da armadilha da pós-verdade.


Como diz Lee McIntyre — «no passado, talvez os desvios cognitivos fossem minimizados pela interacção entre nós. Não deixa de ser irónico que na inundação mediática quotidiana, nós possamos estar mais isolados da opinião contrária que os nossos antepassados estavam por serem forçados a viver e trabalhar com membros da sua tribo, aldeia ou comunidade, interagindo uns com os outros à procura de informação. Quando falamos entre nós não podemos senão expôr-nos à diversidade de visões.» Daí que a Igreja sinodal seja um caminho para a verdade que nos afasta da pós-verdade.


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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