Inutilidade
Quando o ano passado tínhamos 5000 casos novos de Covid-19 por dia era o desespero. Nos últimos tempos já tivemos 50000 e não parece estarmos muito desesperados. Uma grande parte desta disposição diferente deve-se ao grande número de pessoas vacinadas e às práticas mais habituais de higienização dos espaços e contactos. A quietude que o confinamento nos obrigava começa a dar lugar à quietude dos tempos mais serenos que parecem avizinhar-se. Mas será que nos apercebemos nessa quietude do valor da inutilidade?
Quando os efeitos mais nocivos da pandemia se faziam sentir, pediam-nos para estarmos quietos. Lembro-me de como foi difícil viver assim para muitas pessoas, sobretudo as extrovertidas que viviam dos relacionamentos sociais que tinham com muitas pessoas. Já os mais introvertidos até tiraram proveito desta pandemia que lhes dava motivo para não saírem de casa e confraternizarem, ou se isso era inevitável, ao menos beneficiavam do distanciamento social. A saúde mental e o crescimento pessoal de qualquer tipo de personalidade estará sempre na procura de um meio-termo. E aprendermos a dar tempo para pensar, como acontece nos espaços de quietude e nos momentos que nos parecem mais inúteis, pode ser uma das lições mais importantes a tirar desta pandemia. Porém, esta é uma lição bem antiga.
Na China Antiga, poucas centenas antes do nascimento de Jesus, o filósofo Zhuang Zhou oferecia à cultura humana Zhuangzi, um protagonista num conjunto de diversas histórias com uma linha de pensamento comum que convida ao gozo de estarmos junto com os nossos pensamentos em vez de estarmos sempre a produzir seja o que for. A ideia que ainda hoje subsiste é de reclamar as nossas vidas, a felicidade e a realização pessoal tornando-nos mais inúteis.
Como professor num Departamento de Engenharia vejo como a produtividade e o fazer muitas coisas é considerado sinónimo de realização. Muitas vezes vejo como os professores e alunos não têm tempo a perder e entre artigos, trabalhos, emails, gestão académica, pouco tempo sobra para parar e nada fazer.Os suspiros de muitos quando nos encontramos pelo corredor, nos olhamos e (mesmo sem nada dizer) percebemos como estamos assoberbados de trabalho, acabam por revelar como a pandemia ofereceu a oportunidade de cultivarmos espaços de quietude, perfeitamente inúteis, mas resistimos a essa prática.
Um dos capítulos em Zhuangzi refere-se a uma árvore que está de tal modo torcida e cheia de nós que se tornou completamente inútil para qualquer trabalho de carpintaria. Zhuangzi não está minimamente preocupado com o que acontecerá a esta árvore, dizendo — «os machados nunca encurtarão a sua vida, nada a pode magoar. Se não existe uso para essa, como pode ficar desgostosa ou sentir dor?» Se ninguém liga ao que é inútil, não será na inutilidade que encontraremos os melhores espaços para aproveitarmos melhor a vida que é dom de Deus?
Muitas pessoas gostam de mostrar aos outros como são árvores bem formadas, com todos os membros direitinhos, produzem frutos a tempo inteiro, mas, sem se darem conta, vivem à mercê do corte útil e, o mais provável, é que lhes cortem tudo o que puderem cortar até sobrar muito pouco. O resultado de uma vida orientada para a utilidade de tudo o que fazemos pode ser a fragmentação de nós próprios, divididos e úteis para todos, excepto para o que realmente nos faz felizes e, consequentemente, aqueles que nos rodeiam. Gera-se desequilíbrio e nossa história afasta-se do gozo de viver.
As pessoas deformadas são consideradas como inúteis por aquelas que pensam ser normais. E pelo peso social que a utilidade impõe, quem vive com limitações físicas ou cognitivas, dificilmente reconhece a sua limitação como um caminho para a paz. Mas quando vêem as pessoas “perfeitas” com semblantes cinzentos depois de um dia da utilidade que o seu corpo permite, talvez se apercebam de que os limites podem tornar-se fonte de gozo da nossa própria existência.
A vivência da utilidade na sociedade actual transforma-nos em ferramentas para servir aqueles que nos pagam. Vivemos na ilusão de que ganhar mais para viver melhor, mas a que preço? Na prática, muitos preferem sacrificar a paz proveniente dos momentos de inutilidade na sua vida para se venderem à lufa-lufa que os deixa esbaforidos no fim da viagem humana por este mundo. Quer isso dizer que devíamos deixar de trabalhar, de nos esforçarmos por dar uma vida melhor à nossa família?
O segredo está sempre no equilíbrio entre o útil e o inútil. Quando baixarmos os braços para dedicar um momento simples de contemplação pela janela, deixar a mente vaguear, sem nos preocuparmos com os elogios que os outros nos podem dar, ou se nos irão condenar, talvez experimentemos um pouco da liberdade presente na inutilidade.
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