Vergonha

Crónicas 3 fevereiro 2022  •  Tempo de Leitura: 6

Os abusos de menores no seio da igreja católica são uma vergonha e a razão provém do Evangelho. «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Deste ponto de vista, os abusos não são apenas criminosos, como também um profundo sacrilégio feito ao próprio Jesus. E apesar do pensamento das pessoas voltar-se para o abuso da pior espécie que é o de natureza sexual, existem outros abusos (de poder e influência) que afectam a consciência das crianças e dos jovens, podendo criar traumas de personalidade que duram uma vida. Em rigor, quem comete estes actos pode dizer-se cristão, mas não é. E faz-me sentir vergonha. Contudo, também a televisão pública fez-me sentir vergonha.



No dia 1 de fevereiro estava a ouvir as notícias na RTP, a nossa televisão pública, o que é raro fazê-lo. A um dado momento dão uma notícia sobre os abusos de menores no seio da igreja católica neo-zelandesa, onde o jornalista refere um documento e diz que — «O documento revela que 250 mil crianças, jovens e adultos vulneráveis foram abusados e maltratados dentro da Igreja Católica neo-zelandesa, desde 1950.» Fiquei perturbado com a notícia como, seguramente, todo o país que a escutou. No dia seguinte, pela manhã, recebo a Newsletter do Sete Margens com uma notícia a referir o mesmo assunto, mas agora não é o número de 250 mil crianças, mas 1680 denúncias (relatório original) que se fossem assumidas como todas relativas a crianças representariam 0.67% do total de abusos referidos na RTP, pelo que 99.33% correspondem a abusos feitos em outras organizações estatais. Achei tudo muito, muito estranho e continuei a investigar.



Através de uma pesquisa em português encontrei uma notícia no Diário de Notícias que refere o número de 250 mil crianças, mas não as atribui à igreja católica dizendo — «O relatório foi divulgado poucos dias antes da comissão governamental, que revelou num documento preliminar há dois anos que cerca de 250.000 crianças e adultos vulneráveis tinham sido maltratados desde 1950, deverá realizar audições públicas em casos emblemáticos de abuso no seio da Igreja Católica.» Quer isto dizer que há dois anos que sabemos deste número e nunca foi uma notícia relacionada com a igreja católica. Aliás, numa notícia publicada pelo The Guardiande dezembro de 2020, veio a público este desastre onde apenas são mencionados os orfanatos geridos pela Igreja (e não refere qual a denominação cristã) sem mais detalhes, e a palavra “católica” nem sequer aparece. Por que razão a RTP informou uma falsidade para milhões de portugueses no dia 1 de fevereiro? Senti vergonha deste serviço público.



Não importa se a percentagem de abusos a menores é pequena ou grande no seio da Igreja Católica, basta um caso para ser “horrendo” e vergonhoso. Mas a desinformação é também “horrenda” quanto distorce a realidade e semeia divisões. Os abusos de menores nas organizações estatais devem ser, também, combatidos e ter o mesmo tempo de antena porque um Estado que não protege as crianças, não protege o seu futuro. Mas a vergonha que sinto não deve ser confundida com a culpa. 


Brené Brown é uma especialista no estudo da vergonha e diz que a vergonha centra-se no próprio, enquanto a culpa centra-se no comportamento. Eu sinto vergonha pelo que acontece na igreja católica por sermos um só corpo em Jesus, pelo que saber de um abuso a Jesus num menor faz-me sentir abusado e, por isso, sinto vergonha.


A crise experimentada na igreja católica serve de lenha para o fogo de muitas pessoas que habitualmente se insurgem contra essa, fundamentando as suas críticas e têm toda a razão para isso. Os abusos de menores por parte das pessoas que se dizem cristãos, em rigor, são realizados por pessoas que mentalmente precisam de ajuda e são tudo menos cristãs. Se o nosso irmão cometer um crime, não deixo de o amar, sinto vergonha pelo que ele fez, mas isso não faz de todos os membros da nossa família criminosos, ou elimina todo o bem que procuramos fazer à comunidade e sociedade em geral. E sentir vergonha é saudável.



Na Teologia do Corpo de S. João Paulo II, a vergonha provém da consciência do significado original do nosso corpo. A vergonha é o sentir do quanto nos afastámos da inocência original de termos sido criados por amor e para o amor. A vergonha é uma experiência da fronteira entre o que somos e o que Deus nos chama a ser. A nudez original não abusa ninguém e expressa a limpidez do coração que vive no profundo respeito pelo outro. A vergonha leva-nos a vestir por sentirmos pudor, protegendo o nosso corpo dos abusos e da desinformação. Abusos que realizamos connosco próprios ao não controlar os nossos impulsos que depois se reflectem nos abusos que fazemos dos outros. Desinformação que distorce a realidade, propagando a falsidade como se fossem factos alternativos. A vergonha será o sinal da esperança para recomeçarmos, reconhecendo os nossos erros, assumindo as devidas responsabilidades, e aprender cada vez mais e melhor a ver Jesus no outro.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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