Aflito

Crónicas 10 março 2022  •  Tempo de Leitura: 6

Recordo-me de ler uma vez como Jesus na Sua Paixão entrou numa situação em que tudo estaria fora do Seu controlo. Como verdadeiro homem estou certo de ter ficado bem aflito com toda a situação. Podemos sempre explorar uma imagem de um Jesus sereno, mas eu tenho muita dificuldade em acreditar nisso. A partir daquele momento, Ele ficou totalmente dependente da vontade dos outros. Sem o reconhecerem como Deus, ninguém pensou qual seria a Sua Vontade. Creio que essa insensibilidade, para quem tanto deu de Si, seria razão para o deixar aflito.

No seu livro “Espera de Deus”, Simone Weil diz que — «a aflição faz que Deus pareça ausente por um tempo, mais ausente do que um homem morto, mais ausente do que a luz na total escuridão de uma cela. Uma espécie de horror submerge toda a alma. Durante esta ausência, nada há para amar.» — E o fruto desta aflição e do sentimento de ausência é o que leva Jesus a gritar da cruz — «Meu Deus, meu Deus porque me abandonastes?» (Mc 15, 34). Ao pensar na situação que se vive na Ucrânia, e nesta aflição que se pode sentir da ausência de Deus, recordo o que Timothy Radcliffe escreve no seu livro “A Arte de Viver em Deus” — «Deus conserva junto de si o nosso sentido de termos sido esquecidos por Ele.» É o paradoxo do Aflito.

A dor, o sofrimento e a morte serão sempre questões em aberto na vida espiritual de todo o crente. Ninguém deseja a dor, mas se não a sente fica aflito. Ninguém deseja o sofrimento, mas se não o sente, também fica aflito e a pensar que a sua mente não está bem. Ninguém deseja a morte e fica aflito só de pensar no corte radical que essa representa na vida de cada um de nós e daqueles que mais amamos. Para onde vai a totalidade do nosso ser quando morre? Não é recomendável a todos, mas na série Killing Eve na HBO, a assassina Villanelle vê-se confrontada com a importância de dizer a verdade num grupo de terapia para toxicodependentes. Diz algo de profundo que não estaríamos à espera de alguém com tanto desdém pela vida dos outros — «as pessoas pensam que a tua alma ou a tua personalidade, ou seja lá o que for, abandona o corpo quando morres; juro que ela vai para dentro, para o mais fundo. Cai tão fundo, para dentro, e torna-se tão pequenina que já não pode controlar o teu corpo.» A morte é a caída final no íntimo do aflito porque lá poderá encontrar Quem menos espera.

Como diz Santo Agostinho, Deus é -«mais íntimo a mim do que eu próprio» — porque nós conhece profundamente e sabe a origem das nossas aflições. Muitos procuram Deus nas coisas exteriores a si, quando a Sua presença se faria sentir no que é mais interior a cada um de nós. Quando em plena Segunda Guerra mundial, a jovem Chiara Lubich se questionava nos abrigos com outros refugiados se haveria algum Ideal que não houvesse bomba que destruísse, sentia dentro de si que havia — Deus. Decide fazer d’Ele, o Ideal da sua vida, e acabou (sem ter essa intenção) por fundar a Obra de Maria, mais conhecida por Movimento dos Focolares. Da aflição da morte pode surgir a experiência inesperada que dá vida.

A guerra na Ucrânia está a deixar-nos muito aflitos. Vemos a dor, o sofrimento e a morte sem necessidade. Vemos os preços a subir. Escala o clima de incerteza e o medo pelo que o futuro reserva deixa-nos apreensivos e aflitos. Este é o período da nossa Paixão. O que fazer? Se nos disserem para nos mantermos calmos, pode não resultar.

Sinto que a Quaresma nos convida a manter o coração aberto. Aberto à possibilidade de ajudar no que pudermos, a não perder a primeira oportunidade de realizar um gesto de amor, a saber entregar a nossa aflição em oração. Tudo no mundo passa. Até as aflições. O que não passa é o amor com que perfumamos cada instante como se fosse o último, como se fosse realmente único. Mas é mesmo assim. Não vale a pena esconder quando estamos aflitos. Vales antes a pena deixar que os outros nos ajudem. E, assim, experimentar a nossa vulnerabilidade na mão que oferecem para nos tirar da aflição. Seremos um rosto de Jesus Abandonado. Reconheceremos o rosto de Jesus Abandonado. E abrindo os braços por estarmos na cruz, oferecemos ao mundo a dor como um abraço de amor incondicional na esperança de um rasgo de luz no meio da escuridão.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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