Palcocénica

Crónicas 2 junho 2022  •  Tempo de Leitura: 5

Imagina-te num palco com alguém numa cena. Estão apenas os dois. O outro é o protagonista. O que fazes? Escutas. Esta é a técnica “palcocénica” com que me cruzei recentemente numa partilha que me fizeram. Num tema que a minha esposa e eu fizemos no passado sobre a Arte de Comunicar a casais, encontrei muitas semelhanças com os três pontos essenciais desta técnica, mas a simples ideia de imaginarmos estarmos num palco (da vida) com o outro pareceu-me original e valiosa.

Escutar não é uma atitude fácil porque exige abdicar de sermos os protagonistas de todo e qualquer diálogo. Escutar é uma das mais necessárias atitudes num mundo em plena guerra, ou de proliferação das vozes através dos meios digitais, onde a fricção para nos fazermos ouvir é bem menor do que a fricção gerada quando somos nós a ouvir. O mundo é ruidoso. Basta viver durante anos numa cidade pequena e, um dia, visitar uma grande metrópole. Mas o ruído que pode dificultar a escuta é mais do tipo interior.

Nos dois anos mais intensos de pandemia, o mundo experimentou um silêncio que alguns chamaram de antropausa, ou seja, uma pausa mundial da actividade humana. O resultado que todos experimentámos foi o crescente volume do canto dos pássaros e de outros animais. Vários cientistas por todo o mundo mediram níveis de ruído humano em cerca de um quinto dos valores antes da pandemia. Inesperadamente, a pandemia tornou-se num convite a saber aprender a escutar. Porém, escutar é uma arte e quando nos imaginamos em plena cena num palco com alguém que escutamos, são necessárias três actos nesta técnica “palcocénica.”

n. 1 — O acto de não interromper. Escutar profundamente o outro implica não falar, nem sequer com a intenção de pedir um esclarecimento ou no sentido de fazer o outro entender que o quero compreender, como sugerem algumas técnicas. Nunca o faríamos em palco enquanto não chegasse a nossa linha no diálogo encenado, certo? 
n. 2 — O acto de não pensar na resposta. Por vezes, quando a escuta atenta tem o objectivo de responder em vez de compreender, o protagonista somos mais nós do que o outro. Se estiveres realmente atento a compreender o que escutas, é impossível pensar na resposta ao que o outro nos diz. Seria querer que o nosso cérebro entrasse em modo multi-tarefa para o qual não está equipado. Muitas vezes, pensar na resposta leva-nos a colocar um filtro que impede escutar totalmente o outro. Nesses casos, arriscamo-nos a uma incompreensão completa que gera mal-entendidos. Não pensar na resposta implica um vazio de ideias, palavras, ou tudo o que podemos considerar como inspiração para o outro. Um vazio assim transforma-se em abertura de modo a acolher exclusivamente as palavras que o protagonista, que contracena connosco no palco do quotidiano, nos oferece.
n. 3 — O acto de não equipar experiências. Cada pessoa é única. E por mais semelhantes que sejam as nossas experiências, o que o outro me partilha não tem qualquer paralelo com o que vivi ou vivo. Quantas vezes telefonamos a alguém para dar apoio por ter perdido um ente querido e acabamos por falar de alguém próximo de nós que faleceu também. Como se partilhar a nossa experiência de dor fosse aliviar a dor da perda sentida pelo outro. Escutar nesta técnica “palcocénica” implica reconhecer que todas as experiências são únicas e que a melhor forma de as escutar será não equiparar.

Estes três aspectos ouvimos noutros contextos, pelo que podemos pensar que já sabemos escutar. Eu próprio havia, como disse, feito este tema no passado com a minha esposa a outros e ouvindo o que era esta técnica, não me parecia conter algo de novo. Mas ao reflectir sobre algumas conversas recentes, e fazendo um exame de consciência a ter ou não aplicado esta técnica, sem lhe dar o nome de “palcocénica”, verifiquei que falhava frequentemente naqueles três pontos fundamentais. Quantas vezes não interrompi. Quantas vezes não respondi logo a seguir. Quantas vezes não falei da minha experiência imediatamente depois de conhecer a do outro.

Quando escutamos “palcocenicamente”, o mais comum será a pausa depois do outro terminar. O mais provável será não termos muito para dizer a seguir. Poderemos, inclusive, sentir que o silêncio é a resposta não-interruptiva experiencial melhor que nos ocorre naquele momento. Mas no silêncio podemos sorrir, dar um abraço, expressar a ternura pelo olhar ou segurar a mão do outro. É essa, talvez, a “cena” de quem escuta.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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