Quando invoco
Nas últimas semanas cantávamos no Salmo — «quando vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.» — mas será isso verdade? Na homilia sobre este texto, o sacerdote contava uma experiência pessoal muito interessante. Teria sido abordado por duas irmãs que lhe partilharam como haviam pedido a intercessão de um Santo pela cura de uma pessoa próxima e não haviam sido atendidas, enquanto que um cantor da praça, que nem sequer era lá muito praticante, pediu a intercessão do mesmo Santo e foi atendido (souberam elas pela comunicação social). Afinal, o “sempre” atende parece aplicar-se a uns, mas não a outros? O Salmo está errado? Talvez seja uma ideia muito reduzida daquilo que significa invocar.
As leituras do Domingo desse Salmo incluem aquela em que Jesus nos convida a pedir ao Pai o que queremos. Porém, a comparação que faz no final não é entre as coisas que damos aos filhos e Deus nos pode dar (se quiser), mas antes algo mais essencial: o seu Espírito. Por isso, podemos ser livres de pedir a Deus seja o que for, incluindo a cura de um familiar ou amigo, mas se não estivermos desapegados daquilo que pedimos, corremos o risco de não ir à essência da nossa relação com Deus. Essa inclui os nossos limites e o acolhimento da dor, sofrimento e morte que advém da nossa liberdade e do modo de ser finito deste mundo. Parece-me injusto cobrar a Deus aquilo que pedimos e não recebemos tirando elações infantis sobre Deus não fazer a nossa vontade, quando deveríamos ser nós a procurar incessantemente qual a Vontade de Deus. Pensemos na morte de um grande amigo.
O José Vitor, meu padrinho de casamento e uma grande referência na minha vida contraiu uma doença com um desfecho fulminante. Estou certo de que ele estava preparado para se encontrar com Deus, mas estaríamos nós preparados para a sua partida? Eu não, admito. E todos rezávamos para que se curasse, mas ele acabou por falecer. Porém, nessa oração, eu reconhecia o facto de sermos finitos e do nosso corpo estar sujeito às condições ambiente que o rodeiam, e de haver sempre a possibilidade das nossas células não funcionarem como seria suposto, pelo que a vida em Deus não recusa o sofrimento, mas usa-o como possibilidade de testemunhar o amor no meio da adversidade. Ou seja, qual é mesmo a Vontade de Deus? Não sei, sinceramente, mas parece-me que mais do que sermos felizes, ou estarmos sempre bem e sem sofrimento, creio que seja o de vivermos com profundidade.
Quando invocamos o Amor, Deus que está mais próximo de nós do que nós de nós próprios. Invocamos Aquele que pode ajudar-nos a suportar os limites do mundo porque está próximo, sabe o que significa sofrer e vive cada momento difícil connosco. E todo o Seu poder está no amor permeado em cada instante, ponto do espaço, e em tudo o que está para além do tempo e do espaço. Muitas vezes cometemos o erro de fazer da acção de Deus uma espécie de máquina de snacks: mete a moeda e sai o snack. Ou interpretar a Sua acção como a de um super-herói da banda desenhada que “faz” tudo e mais alguma coisa contradizendo as leis da natureza e magicamente resolve tudo do modo como achamos ser necessário resolver. Por um lado, quando um milagre desafia a nossa visão e conhecimento do funcionamento do mundo, criticamos quem é crente porque Deus não pode violar as leis deste mundo. Mas quando pedimos a Deus que o faça para ir ao encontro da nossa vontade, seria bom que as leis fossem violáveis. Parece-me que a visão reduzida deste invocar está por detrás destes paradoxos.
O diálogo com Deus que procuramos realizar quando O invocamos não é fácil. O silêncio, a impressão de ausência, a inevitabilidade de algumas dores e sofrimentos, são vivência da carne que dificultam a nossa união com Deus. Quando tenho a mão ferida será sempre difícil ter a visão do todo, pois, a dor está na parte e consome totalmente a nossa atenção, mas há esperança.
Quando invocamos Deus em busca de uma vida profunda, parece-me que nos libertamos do desfecho desejado e cresce em nós o desejo de sermos surpreendidos. E quando as surpresas não são boas, abre-se uma desafiante possibilidade de esgravatarmos o sentido mais profundo de cada limitação vivida na pele. Ninguém deseja sofrer, mas todos experimentamos como o sofrimento nos amadurece e liberta para vislumbrarmos o sentido mais elevado das coisas. Um sentido que só pode vir da luz serena e clara do Espírito Santo quando invocamos Deus e Ele atende, permanecendo connosco, talvez não do modo que queremos, mas como Ele quer. E se passássemos a quer como Ele quer?
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