Quem sou
«Quem sou?» — uma questão de crescimento pessoal intemporal e que fazemos várias vezes ao longo da vida. Recentemente, o jornalista Henrique Raposo escrevia uma crónica interpelante sobre como as pessoas transgénero pretendem com o seu activismo eliminar a nossa biologia e impôr uma linguagem com a qual não temos de nos identificar. Depois existe quem pretenda usar a tecnologia para eliminar todo o sofrimento humano e chegarmos ao ponto de vivermos para sempre, chamando a isso de transhumanismo. Mas existem ainda aqueles que pretendem dar um passo mais desconcertante e eliminar a própria biologia humana, na linha de um póshumanismo. Por isso, quando entramos neste tipo de caminhos para alterar a nossa biologia, na prática, transformamos a questão “quem sou?” em “quem me torno?”. O que me leva a pensar se desprovidos da nossa biologia ainda se considera que “somos” seja o que for.
A descoberta daquilo que somos é uma viagem de aprendizagem fascinante. Quando desenvolvemos vias de transformação daquilo que somos sem conhecer bem quem somos, por que razão receamos fazer, antes de mais, essa descoberta? Por que razão existem ondas culturais de anulamento da nossa humanidade em busca de caminhos que nos dão a sensação de ir para além dessa? Por que razão temos tanto medo de conhecer os nossos limites? Por que razão não usamos os nossos limites para ir além daquilo que pensamos ser e, ainda assim, permanecer humanos?
A longa viagem da descoberta de nós mesmos leva-nos a confrontar a nossa fragilidade. E como não é possível fazer essa viagem sozinhos, mas junto com os outros, confrontamo-nos, também, com a nossa vulnerabilidade. Ninguém vê o que está na nuca, nem sequer vê a sua face. E não existem espelhos perfeitos que nos mostrem “realmente” a nossa face. Todo o espelho contém imperfeições, por mais pequenas que sejam. Mas os outros não têm esse impedimento e, por isso, mais facilmente vêm tal qual somos. E interiormente?
Quando nos questionamos “quem sou?” e encetamos a viagem de descoberta da nossa identidade, qual a razão senão a busca de um sentido para a nossa existência? E nos momentos da história humana em que os nossos relacionamentos restringiam-se às comunidades em que vivíamos, o sentido alinhava-se com o da vivência comunitária. Mas a expansão dos nossos horizontes através da tecnologia, e o estabelecimento de relacionamentos digitais com pessoas de outras culturas e experiências de vida, levou a que a busca de um sentido que nos ajude a descobrir quem somos enche-se de contornos que extravasam o sentir comunitário, alargando-se, mas a que preço?
O teólogo Jürgen Moltmann escrevia — «sou porque existes» — sublinhando a importância do relacionamento com os outros para nos darmos conta de que existimos. Os relacionamentos são mais constitutivos da nossa pessoa do que os ossos são para o nosso corpo. E se não conseguimos imaginar o corpo sem ossos, não deveríamos ser capazes de imaginar a nossa pessoa sem relacionamentos. E quando não temos ninguém com quem nos relacionarmos, relacionamo-nos com as pedras e qualquer outra coisa (nem que seja uma bola de voleibol como no filme “Naufrago”) presente no ambiente à nossa volta.
Num ossário de frades franciscanos no lugar onde S. Francisco escreveu a sua primeira regra, encontrei uma frase enigmática — «Aquilo que sois, fostes... aquilo sois, sereis.» — ossos? Matéria? Ninguém nos reconhece pelos nossos ossos, mas todos os relacionamentos que estabelecermos serão motivo para nos reconhecerem quando tudo o que restar de nós forem os nossos ossos. Mas a frase parecia dizer-me como tudo o que acontece que nos leva a experimentar o tempo está ligado. Não podemos negar o nosso passado, mas também não podemos comprometer com o passado, o futuro, porque estamos sempre a mudar. Por exemplo, depois de acabares de ler esta frase, és já uma pessoa diferente, transformada por aquilo que leste e que reorganizou o teu cérebro, mesmo sem te dares conta disso.
«Oh!»— encolhes os ombros — «Mas se estou bem relativamente a quem sou, por que razão haveria de querer ser diferente?»— Mas, e se ao seres diferente pudesses fazer maior diferença ainda na vida dos outros? Não é somente por nós próprios que vale a pena ser diferente, mas pelo tecido de relações que estabelecemos ao longo da vida, o nosso ser está intimamente ligado ao ser dos outros.
“Quem sou?” é mais do que uma das perguntas fundamentais da nossa existência. É a pergunta que nos impulsiona a desacelerar num mundo dominado pelos ponteiros do relógio e a redescobrir o valor dos relacionamentos com os outros para nos darmos maior conta de que o “sou”, na realidade, é mais um “somos”. Por outro lado, se quiseres ajudar o outro a descobrir quem é, interessa-te por ele.
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