O segundo “Fragmento” do filósofo grego Heráclito (535 AC - 475 AC) diz — «Para a sabedoria, não me escutes, mas antes a Palavra, e fica a saber que tudo é uno.»(tradução minha). E no Evangelho de S. João, logo no primeiro capítulo (Edição da DIfusora Bíblica), diz — «No princípio de tudo, aquele que é a Palavra já existia.»Reparem, já Heráclito havia escrito “Palavra” com maiúscula, quinhentos anos antes de Jesus. O que o teria levado a escrever dessa forma?
Estas curiosidades sem qualquer nexo aparente levam-me ao Fragmento 7 — «Quem não pode procurar o imprevisível nada vê, pois, o caminho conhecido é um impasse.»— como se fosse um convite a manter a mente aberta ao que não prevemos ou compreendemos, mas que desperta a nossa atenção e leva-nos a fazer ligações que antes não nos passaria pela cabeça. Como o Fragmento 19.
«A sabedoria é a unicidade da mente que guia e permeia todas as coisas.» (Frag. 19)
Li uma vez do teólogo Denis Edwards (1943 - 2019) que — «Sofia, a Senhora Sabedoria, é aquela em quem Deus cria o universo. Ela sustém todas as coisas. Ela é a companhia de Deus na criação, relacionada com todas as criaturas de Deus e deliciando-se nelas. (…) A primeira comunidade Cristã identificou Jesus com Sofia (…).» (“Jesus the Wisdom of God - An ecological theology”, Orbis Books, 1995). E mais uma vez, Heráclito parece ter precedido esta experiência da comunidade Cristã. Mas este tipo de precedência de uma sabedoria milenar não se restringem ao domínio da fé, como o Fragmento 22.
«Todas as coisas mudam com o fogo, e o fogo exaurido retorna às coisas (…).»(Frag. 22)
As coisas correspondem à matéria e o fogo à energia. O que Heráclito aponta é a conversão entre massa e energia … E = mc^2? Não tinha qualquer capacidade matemática e física para formular a famosa equação de Albert Einstein, mas a intuição estava lá. Ao pensar nesta sabedoria milenar, questiono-me quantas outras intuições não se esconderão naqueles fragmentos. Por exemplo, Alexander von Humboldt foi um maiores exploradores na história da ciência e desde o século XVIII que se havia dado conta de como tudo na natureza está em relação com tudo. Ou, pelo menos, era assim que pensava antes de ler o Fragmento 25.
«O ar morre para dar à luz o fogo. O fogo morre para dar à luz o ar. A água, portanto, nasce da morte da terra, e a terra da água.» (Frag. 25)
Ou seja, todas as coisas estão ligadas entre si em relacionamentos recíprocos de morte e vida. Ciclos de nos estimulam a recomeçar sempre — «O sol é novo, de novo, todo o dia.» (Frag. 32) —, onde os opostos distintos não separam, mas unem-se — «…noite e dia são um só» (Frag. 35). Aliás, eu pensava que a ideia da beleza como a harmonia dos contrastes era original do filósofo e matemático Alfred North Whitehead até ler os Fragmento 46 e 56 —
«Da tensão dos opostos que se unem provém a harmonia.» (Frag. 46).«O cosmos trabalha pela harmonia das tensões, como a lira e o arco.» (Frag. 56)
Ou ainda mesmo a unidade como fruto de uma escolha. Escolha da unidade pela diversidade — «Dois feitos num só, nunca são um só. Discutindo pelo mesmo, discordam. Cantando juntos, competem. Nós escolhemo-nos uns aos outros para sermos um, e desse um, ambos em breve divergem.» (Frag. 59) — De certo modo, neste fragmento sentia como a divergência se pode assemelhar aos raios de sol que possuem a mesma origem porque aos sermos um, a vida impele-nos a partirmos desse um, em vez de nos fecharmos nessa condição.
Depois, o equilíbrio é uma noção fundamental em ciência presente nos nossos balanços de massa, forças e energia. Qual, então, o meu espanto ao ler o Fragmento 39.
«O que estava frio, em breve aquecerá, e o aquecido, em breve arrefecerá. De tal modo que o que está húmido seca, e as coisas secas afogam-se.» (Frag. 39)
Heráclito apenas compreendia o que a vida lhe tinha feito experimentar. Tudo no mundo parece estar num equilíbrio que se dinamiza na reciprocidade que a transferência de massa e energia permite ao fluir quando pode. E até parece que Heráclito percepcionava algo de profundamente novo que apenas se materializou — por assim dizer — em Jesus.
«Todas as coisas mudam. O fogo penetra o caroço da mirra, até que a junção dos corpos morra e se eleve de novo num fumo chamado incenso.» (Frag. 36)
Uma experiência visual aparentemente comum, mas não vos faz lembrar a ressurreição? Não vos parece estarmos diante de uma sabedoria milenar? Talvez duvidem. Mas duvidar é bom. Pode ser a porta de entrada para um encontro com o divino, mas já Heráclito sabia disso —
«A unidade de toda a sabedoria pode encontrar-se, ou não, sob o nome de Deus.» (Frag. 65)