Jogo infinito
Consegues imaginar algo prático que te faça sentir o infinito? Será a contemplação de um horizonte? Ou basta a escrita de um símbolo ∞ ? No mundo digital, a experiência do infinito está a fazer-se nos murais das redes sociais. Alguém consegue chegar ao fim do mural? Parece impossível. Parece infinito. Quase que poderíamos fazer o paralelo entre o mural de uma rede social e um jogo infinito.
O professor de história e literatura da religião James Carse diz que — «Existem ao menos dois tipos de jogos. Um poderia chamar-se finito, o outro infinito. Um jogo finito é jogado com o propósito de ganhar, um jogo infinito com o propósito de continuar a jogar.» Ao ler os traços que Carse atribui a um jogo infinito e seus jogadores, parecia-me reconhecer algumas semelhanças com as pessoas que navegam “infinitamente” pelas redes sociais.
O objectivo de todo o jogo é a diversão. E só podemo-nos divertir se experimentarmos a liberdade ao jogar. Aquele que tem de jogar por ser obrigado , não é livre, logo, não está a jogar, mas a subjugar-se ao que alguns consideram como jogo. Para os jogadores infinitos, a liberdade expressa-se de muitas formas, mas a mais evidente é a de não saberem quando o jogo começa, nem quererem saber, para dizer a verdade, porque o propósito é continuar a jogar. O seu jogo infinito não está limitado pelo tempo. Aliás, se existe algo a evitar é que esse tempo não tenha fim, mas antes uma constante finalidade, de modo a manter todos no jogo.
Um jogo finito tem regras e não podemos mudá-las a meio do jogo, mas se o jogo for infinito não existe outro remédio se não houver mudança das regras ao longo do jogo. Pois, as regras transformam-nos e, transformados, transformamos as regras do jogo para que continuemos a jogar. Carsen diz ainda que — «as regras de um jogo infinito (...) são como a gramática de uma linguagem viva, enquanto que as regras de um jogo finito são como as regras de um debate. No primeiro caso, nós cumprimos as regras como modo de continuar o discurso uns com os outros; no segundo, cumprimos as regras como um modo de pôr termo ao discurso da outra pessoa.» Isso quer dizer que os jogares finitos jogam dentro das fronteiras, mas os jogadores infinitos jogam “com” as fronteiras.
Ao ler estes vários aspectos sobre o jogo e o jogador infinito lembrei-me daquilo que acontece nas redes sociais. As pessoas podem estar um tempo infinito a deslizar o dedo pelo mural e a debater-se com alguém sobre um determinado assunto até mudarem de debate e manterem-se em jogo. Por isso, não é fácil controlar a nossa atenção pelo permanente contacto com a novidade. Por outro lado, é natural que muitos pensem que o modo de chegar com a nossa mensagem a mais pessoas é inseri-la no jogo infinito do mural. Mas o resultado que muitos experimentam é o de um certo cansaço a determinado momento, os olhos ardem, respira-se bem fundo, coloca-se o smartphone em standby e guardamo-lo no bolso. Mas não por mais do que uns breves minutos. Pois, cresce dentro da pessoa um desejo insaciável de voltar ao jogo. Como o mural infinito interage de forma subtil com a nossa biologia, não nos damos conta dos seus efeitos e até pensamos que são normais e bons. Porém, existem outros jogos infinitos. Por exemplo, uma cultura.
A cultura não tem fronteiras e qualquer um pode participar numa cultura, onde quer que esteja e seja em que momento for. A cultura envolve uma actividade criativa da parte de cada pessoa e só pode ser gerada se for o fruto do relacionamento de várias pessoas. É diferente de uma sociedade. Uma sociedade possui fronteiras bem definidas, enquanto uma cultura define-se por um horizonte.
O mural de uma rede social tende a fechar-nos no filtro-bolha daqueles que partilham as nossas opiniões. Uma cultura como jogo infinito alternativo ao mural das redes sociais, em acordo com James Carsen, não suprime as ideias daqueles que pensam de um modo diferente, o que fazem e até a linguagem que usam. Uma cultura é um jogo infinito aberto e que abre. Um exemplo concreto seria o caminho sinodal que se está ainda a realizar e que penso conter o gérmen de ser um jogo infinito que recria a cultura da linguagem que a Igreja é para o mundo contemporâneo. Na entrevista que deu a Maria João Avillez, o Papa Francisco salienta como o Espírito Santo é o protagonista no caminho sinodal e — «no [caminho] sinodal existe a diversidade, o que cada um vai dizendo, mas é o Espírito que cria a harmonia. Se o Espírito Santo não está presente é um parlamento.» Ou seja, converte-se num jogo finito. E se o infinito é característico da experiência que fazemos do Espírito Santo na nossa vida, não é difícil pensar no caminho sinodal como um jogo infinito que gera uma cultura nova e que renova. Muitos receiam entrar neste jogo, mas recordo o eco intemporal, infinito, das duas palavras bíblicas que S. João Paulo II não cessava de dizer — «Não temais!»
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