Fotografia tocável
No seu livro “A câmara clara”, o filósofo francês Roland Barthes escreve o que poderia considerar-se uma filosofia da fotografia. Para ele, nem todas as fotografias valiam a pena terem sido tiradas. Mas aquelas que o levavam a aventurar-se na sua contemplação, atraiam o seu olhar ao sucedido nelas gravado. As fotografias tinham para Barthes dois elementos: o studium e o punctum.
O studium é a área geral que uma fotografia retrata. É o que nos atrai em muitas paisagens de interesse geral que nos comovem. O punctum é a picada. Diz Barthes — «o punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala).» O studium de uma fotografia informa, representa, surpreende, dá significado e provoca desejo. O punctum torna a fotografia tocável à interioridade de cada pessoa.
«A foto torna-se “surpreendente” a partir do momento em que não se sabe porque é que foi tirada...»
As fotos contingentes não têm sentido porque acontecem. Simplesmente. Mas aquelas que conseguem captar a história por detrás da face como o “nascido escravo” de William Casby, tirada em 1963, podem silenciar-nos por reverência ao que imaginamos poder estar por detrás das marcas na pele. E talvez notemos numa marca em particular, como a íris no meu caso. Isso é o punctum. Existe a visão geral da fotografia, mas quando se destaca uma gola, um penso, o modo como os braços se cruzam, ou a maneira de atar os sapatos, isso é o punctum. É o que torna uma fotografia tocável.
Na Era Digital, as pessoas perdem mais tempo a ver videos do que fotografias (isso é coisa do passado). Mas a experiência do punctum, segundo Barthes é o que nos permite acrescentar alguma coisa à fotografia, enquanto nos videos (cinema no tempo de Barthes) será que — «... acrescento à imagem? Penso que não; não tenho tempo: diante do ecrã, não posso fechar os olhos; se o fizesse, ao voltar a abri-los não encontraria a mesma imagem; estou, pois, sujeito a uma voracidade contínua; muitas outras qualidades, sim, mas não a elaboração mental.» — Algo semelhante poderíamos dizer das pessoas que vêem fotos no Instagram. Por um lado, não pretendem dar-nos uma experiência de “ver”, mas mostrar que se estava lá. E essa, curiosamente, é a visão que Barthes tem do fotógrafo. Mas a experiência que o Instagram proporciona com essa visão é a do studium, não do punctum. Pois, — «Coisa estranha: o gesto virtuoso que se apropria das fotos “sérias” (investidas de um simples studium) é um gesto preguiçoso (folhear, olhar rápida e distrairmo-nos, demorar-se e apressar-se)». No Instagram ou em qualquer outra rede social, a interacção com as imagens faz-se com gestos preguiçosos e, por isso, desmaterializam o efeito tocável que poderiam ter em nós.
Será que a Era Digital desenvolveu-se porque não queremos mais ser tocados pelas imagens tocáveis que mexem com o nosso interior? Será que a cedência ao studiumdo entretenimento videográfico elimina dentro de nós o espaço aberto pela fotografia silenciosa?
A pintura antes da fotografia era como uma fotografia. Depois de termos a capacidade de gravar a imagem real, parece-me que se justifica como a pintura saiu do real para entrar no irreal que se realiza na visão interior do pintor e que, pela sua mão, tela e tinta, se materializa num quadro que produz punctum em nós. A fotografia tocável, não-digitalizável, suscita em nós uma sequência cognitiva e emotiva únicas — «nada dizer, fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afectiva» — deixando-se tocar por dentro e por fora para nos confirmar, acima de tudo, que estamos vivos e que o nosso olhar vivifica o que é tocável.
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