Tempo profundo
E se pudéssemos experimentar o tempo sem relógio? Uma das frases que mais ouvimos de várias pessoas é — «não tenho tempo.» Se o tempo se possuísse, ainda compreendia, mas como não possuímos o tempo, a frase significa — «não vivo o tempo.» Há quem faça questão de viver para o tempo e ande sempre atrás das horas, minutos e segundos, e há quem garanta o tempo para viver quando consegue desfrutar plenamente dos momentos sem olhar para o relógio. Os primeiros mergulham no tempo cronológico, os segundos mergulham no tempo kairológico. O primeiro é o tempo sequencial, o segundo é o tempo profundo.
Lembrem-se daqueles momentos em que dissemos (interiormente ou verbalmente) — «Oh meu Deus! Já percebi!», ou «Melhor é impossível. Que dia!», ou ainda «Este momento é o culminar dos anos que dediquei da minha vida a isto.» — são expressões de experiências plenas, onde sentimos que se ligaram diversos pontos e vivemos momentos marcantes que jamais esqueceremos. São experiências kairológicas do tempo profundo.
O domínio do relógio sobre os nossos ritmos é incontornável e leva-nos a viver um paradoxo. Não temos tempo, mas contamos todos os minutos e horas. Se não tivéssemos tempo, nada haveria para contar e daí o paradoxo. Talvez o que se vive não seja a falta de tempo, mas o ocupação do tempo. O tempo aguarda que o experimentemos, mas sentimos que está ocupado com coisas que não nos realizam plenamente e daí a queixa. Por essa razão, a descoberta e vivência do tempo profundo, gradualmente, deveria preencher mais os nossos momentos. A questão será: como?
Quando o frade francisco Richard Rohr aprofundava numa entrevista este tema do tempo profundo, e no modo de encontrar esse espaço na nossa vida, referia a contemplação. Dizia — «ser um contemplativo é aprender a confiar no tempo profundo e o modo de aí permanecer sem sermos enrolados no tempo cronológico. Pois, o que aprendemos, especialmente na minha idade, é que tudo passa. As coisas que nos apaixonavam quando tinhamos 22 ou 42 anos já nada significam, e, no entanto, na altura irritavam-nos e investíamos muito nessas coisas.» — Passados anos, a sensação que fica é a de um tempo perdido que poderíamos ter saboreado mais com momentos contemplativos que nos teriam levado a experimentar o tempo profundo e a criar memórias duradoiras.
Aquilo que no momento presente parece importante e ocupa o nosso tempo cronológico relativiza-se quando colocamos esse plano temporal "à luz da eternidade". De facto, quando vivo momentos cronológicos de maior tensão por estar a terminar um prazo, ou porque se aproxima um grande evento que estou a organizar, a um dado momento, a serenidade volta quando procuro ler o rebuliço interior "à luz da eternidade". Abrir a perspectiva temporal da vivência quotidiana com o eterno, ajuda a perceber que muito daquilo que nos leva ao stress a contra-relógio, nada vale diante dos valores que orientam a nossa vida, como o amor, a família, a solitude, ou contemplar.
O nosso tempo neste planeta é finito e desconhecido. Não sabemos o dia e a hora em que terminaremos a nossa viagem. Por isso, importa começar a equilibrar o tempo cronológico que ajuda a sincronizar os nossos ritmos com os ritmos dos outros, com o tempo profundo que nos revela a natureza da vida e o sentido e significado de cada momento presente. Nesse sentido, uma proposta para ligar o relógio ao kairológiopoderia ser dedicar um breve momento do nosso dia a escrever uma frase ou duas num Diário de Gratidão. Ou seja, procurar parar por um momento, pensar naquilo que vivemos e agradecer pela mais pequena ou grande coisa. Escrever um momento kairológico consolida a sua vivência.
O mundo actual valoriza muito a produtividade. E sair da ideia de que ser produtivo é fazer muita coisa em pouco tempo, está a ser um processo lento. Mas o facto de haver empresas que estão a reduzir os dias de trabalho de cinco para quatro é um sinal claro de que o tempo profundo se tornou numa necessidade premente para o tempo cronológico presente. Importa mais a qualidade daquilo que fazes do que a quantidade.
O tempo profundo é o tempo dos abraços, dos sorrisos, da atenção dedicada aos outros porque nos interessamos por eles, da criatividade, do silêncio e dos espaços de ócio (por oposição ao negócio). Apesar de não ser fácil imaginar um mundo sem relógios, talvez o que mais se aproxima disso seja aprender a colocar os relógios no sítio certo e evitar que o tempo sequencial domine o espaço que poderia (e deveria) ser partilhado com o tempo profundo.
Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao